Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Margareth Sullivan

Com a temporada de futebol americano profissional a pleno vapor, nada poderia vir mais a propósito do que a discussão do filme que a Sony lançará em dezembro, Concussion [Concussão]. O filme conta a história do dr. Bennet Omalu, um patologista forense que descobre uma doença do cérebro relacionada ao futebol americano e levanta questões em relação à segurança daquele esporte. O assunto é interessante e – levando em conta o volume de dinheiro envolvido no mais popular esporte dos Estados Unidos – delicado.

Este mês, no entanto, uma matéria de primeira página do Times questionou até onde irá a coragem do filme e se ele sofrerá modificações de forma a acalmar a Liga de Futebol Nacional (NFL). A direção da Sony e o diretor do filme manifestaram-se energicamente contra o artigo, chamando-o de incorreto e desleal e protestando contra o fato de ele depender de e-mails pirateados de empresas que os obtiveram no início deste ano por meio de uma ação ilegal. Os editores do Times vêm acompanhando a matéria.

Examinemos duas questões que foram levantadas. Em primeiro lugar, a matéria foi correta e leal? E em segundo lugar, e muito mais importante, seria adequado e ético que organizações jornalísticas usem material roubado como fonte de informação?

Como o editor de padrões de ética do Times, Philip B. Corbett, destacou em sua resposta à Sony, o artigo permitia que o gigante de entretenimento e o diretor do filme tivessem ampla oportunidade de responder ao pressuposto, com base nos e-mails, de que o filme foi tratado com luvas de pelica devido às preocupações com uma reação por parte da NFL.

A importância do material roubado

Mas a publicação da própria matéria, principalmente por ter saído na primeira página do New York Times (que ainda é um sinal de destaque, mesmo nesta era de jornalismo móvel em primeiro lugar), cria a impressão de que algo diabólico ocorria por trás das cortinas. Não acho que tenha sido esse o caso. Na realidade, o diálogo e a crítica descritos na matéria – por meio dos e-mails – não são muito diferentes daqueles que o Times sabiamente utiliza quando divulga matéria importantes que poderiam ter repercussões legais ou outras.

Às vezes, um artigo pode constar de uma reportagem equilibrada e de um título que reflete o fundamental da matéria, mas que, no entanto, pode sugerir aos leitores um fato-chave que não é inteiramente justo. Considerando o lugar de destaque que a matéria ocupou e seu pressuposto, de maneira geral, os leitores poderiam facilmente deduzir algo a partir das seguintes linhas: “A Sony cede, com medo da ira da NFL”. Entretanto, os responsáveis pelo filme mantêm que Concussion analisa de forma penetrante o papel da Liga e o prejuízo causado às vidas dos jogadores. “Assim como se faz com todas as histórias baseadas em fatos reais, nós adotamos um processo exaustivo de edição e revisão”, escreveu-me o diretor do filme, Peter Landesman, “mas apenas para garantir exatidão e lealdade, e não para evitar protestos ou descontentamentos por parte da NFL.”

O Times fez um trabalho importante e louvável, nos últimos anos, sobre o assunto das concussões relacionadas ao esporte e seu impacto devastador na vida das pessoas. Levando isso em consideração, assim como o fascínio natural para com uma coisa altamente lucrativa, como o futebol profissional, o interesse do jornal pelo filme e pelas intrigas de bastidores faz todo o sentido.

A questão principal é uma sobre a qual os jornalistas vêm sendo obrigados a refletir há muitos anos. Material roubado vem sendo a essência para importantes matérias jornalísticas há várias décadas e são poucas as pessoas que argumentariam que isso não deveria ser feito.

Mudança de diretrizes

Aqui vai um ditado que vale a pena ser lembrado: “A notícia é o que alguém não quer que se saiba. O resto é publicidade.” Avaliem-se tesouros de informação como os Papéis do Pentágono ou, mais recentemente, as transgressões da Agência de Segurança Nacional (NSA) reveladas por Edward Snowden. A maioria dos cidadãos acharia que sai ganhando ao saber dessas coisas, apesar de se tratar de informação confidencial que não tinha a intenção de ser consumida pelo público. A vergonha diplomática que envolveu a WikiLeaks (assim como outras matérias jornalísticas mais sérias) teve um valor jornalístico concreto, embora a missão de servir o público fosse menos óbvia.

E a tagarelice, com observações pouco elogiosas, sobre Angelina Jolie ou Adam Sandler teria o mesmo valor? E os e-mails que proporcionaram a base para a matéria sobre o filme Concussion? Deveria se esperar privacidade de uma correspondência empresarial desse tipo?

“Nós não estamos falando dos Papéis do Pentágono”, brincou Robert Lawson, porta-voz da Sony, quando o entrevistei por telefone na semana passada. Ele argumenta que o uso desses e-mails com objetivos de fazer uma reportagem é aético. E também diz que os jornalistas o fazem “em prejuízo próprio”, pois os e-mails individuais são fragmentos que podem ser retirados de seu contexto e convidam à inexatidão. “Foi exatamente isso que aconteceu neste caso”, disse ele.

O Times mudou suas diretrizes ao permitir que seus jornalistas utilizassem os e-mails pirateados no caso da Sony. Anteriormente, a orientação dada aos repórteres era de que o material só poderia ser usado como fonte se tivesse sido citado antes ou tivesse chegado ao Times através de uma segunda fonte. Isso parecia estranho, mas decorria de preocupações legais e do desejo de usar algumas restrições. Na primavera deste ano, depois que o tesouro foi divulgado por inteiro, pelo WikiLeaks, o Times decidiu afrouxar essa diretriz. A essa altura, segundo Philip Corbett, os e-mails eram amplamente disponíveis a qualquer pessoa do público e, portanto, de divulgação justa.

A fragmentação e a precisão

Tom Rosenstiel, coautor dos livros Blur e The Elements of Journalism em conjunto com Bill Kovach, aplica o que chama um “teste de desobediência civil” ao uso de material roubado. “O que prevalece para o público, a qualidade ou o valor daquelas que são consideradas transgressões cometidas?” é a questão, diz ele. Em última instância, disse-me, “cabe à audiência decidir”.

As histórias dos e-mails da Sony encaixam-se numa área mal definida. É claro que não são os Papéis do Pentágono e algumas das histórias que produziram são pouco mais do que fofocas. Mas mesmo essas podem ensinar aos leitores algo sobre como funciona Hollywood, sobre como funciona o complexo da indústria de entretenimento nos Estados Unidos e sobre a cultura norte-americana.

Em minha opinião, o Times não agiu de maneira irresponsável. Porém, aprofundando a questão (pois este nicho de informação está longe de estar esgotado), os editores e os repórteres deveriam prestar mais atenção aos alertas sobre fragmentação e precisão. E deveriam perguntar, e deveriam continuar perguntando, se o interesse público acha que vale a pena usá-los como material de fonte.

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Margaret Sullivan é ombudsman do New York Times