‘Desafios vão desde conhecer o contexto em que a palavra original é usada até ter tempo para pesquisar os termos que diferem de país a país.
‘É de chorar, não?’
Assim um leitor reagiu ao erro de tradução da Folha no primeiro dia do ano.
Na entrevista com o cientista político David Samuels, seu livro ‘From Socialism to Social Democracy? The Evolution of the Workers’ Party in Brazil’ foi traduzido como ‘Do socialismo à social-democracia? A evolução da festa dos trabalhadores no Brasil’.
Dois dias depois, a correção esclareceu que o título se referia ao ‘Partido dos Trabalhadores’ (o tal ‘Workers’ Party’), e não a alguma ‘festa’ -outra tradução literal para ‘party’, despropositada no contexto.
Para chorar ou rir, enganos de tradução constituem ameaça cotidiana ao jornalismo. Volta e meia, lêem-se em português, incompreensíveis ou distorcidas, informações e declarações veiculadas na origem em outro idioma.
No fim de dezembro, o Screen Actors Guild, sindicato americano de atores de TV e cinema, transformou-se na Folha em entidade de críticos.
Em setembro, ‘The Palermo Shooting’, filme de Wim Wenders, foi tratado como ‘O tiroteio de Palermo’. Após o alerta de um leitor, ‘Erramos’ reconheceu que as ‘traduções mais adequadas’ seriam ‘Fotografando Palermo’ ou ‘Filmando Palermo’ -’shooting’ tem acepções diversas.
O ‘tiroteio’ pela Casa Branca estimulou o Programa de Qualidade do jornal a distribuir dez dias atrás uma valiosa relação de mais de uma centena de ‘termos comumente usados na cobertura eleitoral americana, para facilitar traduções e evitar problemas com falsos cognatos ou traduções literais de expressões idiomáticas’.
A lista foi coordenada pela editora de Treinamento, Ana Estela de Sousa Pinto, a partir de sugestão de Roberto Dias, ex-correspondente em Nova York e hoje editor-assistente de Brasil. Ensina-se, por exemplo, que ‘strategist’ nada mais é que ‘marqueteiro’.
Os leitores ganhariam se o jornal fosse mais fiel a essas instruções do que costuma ser ao ‘Manual da Redação’.
O ‘Manual’ determina: ‘A tradução da expressão de língua inglesa ‘press conference’ é ‘entrevista coletiva´‘, não ‘conferência de imprensa’. A fórmula vetada segue assídua.
Bem como ‘evidência’ no lugar de ‘prova’, que no ambiente da Justiça deve ser a tradução mais comum (com ‘indício’) de ‘evidence’, lição da lista que reafirma o ‘Manual’. Em maio, noticiou-se que um homem foi solto ‘por falta de evidências’. Em bom português, faltaram provas.
Dos sete jornalistas que contribuíram para a elaboração da lista, o mais tarimbado é Carlos Eduardo Lins da Silva, hoje diretor de Relações Institucionais da Patri Políticas Públicas. Ele foi correspondente da Folha em Washington em 1987-88 e 1991-99.
Indaguei-lhe sobre tradução. ‘O desafio maior é encontrar a expressão em português do Brasil que tenha o significado mais próximo possível do que a palavra a ser traduzida tem na cultura da língua de origem’, ele respondeu.
‘Ou seja: conhecer o contexto em que a palavra original é usada. Como no caso do ‘party´: Tecnicamente, é festa mesmo. Mas (…) no contexto da política não é. Por isso, para traduzir bem de verdade, é preciso que o tradutor tenha vivido na sociedade que usa a língua que deseja traduzir. Ou, no mínimo, que conheça muito bem essa sociedade.’
Há duas décadas tradutora na Folha, Clara Allain é reconhecida pela excelência do seu trabalho -não são dela os erros aqui enumerados. Filha de inglesa e francês, ela aponta alguns desafios da profissão.
‘São vários -talvez o maior seja a falta de tempo para pesquisar coisas que diferem de país a país. Exemplo: se promotor é o mesmo que ‘prosecutor’, se ‘chancellor’ é chanceler, e assim por diante.’
‘São as diferenças de organização social, política, educacional, sindical etc. etc., de um país a outro, que às vezes fazem com que seja difícil encontrar a tradução correta para termos, ou a que chega mais perto da idéia original, quando se está correndo contra o tempo e a falta de espaço.’
Lins da Silva acrescenta: pressa e preguiça são as maiores armadilhas da tradução.
Os dois pecados conspiraram para traições da Folha aos originais: Silicon Valley saiu como Vale do Silicone (e não do Silício); ‘Il Gattopardo’, como ‘O Gato Pardo’ (o romance italiano é ‘O Leopardo’); e a gíria americana ‘Bimbo’, designação de ‘moça considerada bonita, mas pouco inteligente’, virou órgão sexual masculino.
São mancadas dos anos 90. Não custa o esforço para não engordar a antologia de vexames que fazem rir ou chorar.’
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‘Gol contra’, copyright Folha de S. Paulo, 20/1/08.
‘A Folha trombeteou na capa do caderno ‘Veículos 2’ do domingo: ‘Fotos exclusivas mostram a ‘cara’ do Gol G5’. Sob a manchete, uma imagem do carro indo e outra vindo.
As fotografias não eram exclusivas. Nem aquelas eram a ‘cara’ e a traseira da nova geração do modelo anunciado.
Um leitor atento me informou sobre a veiculação das imagens na internet desde outubro. Avisei a Redação.
Na quarta, saiu ‘Erramos’ esclarecendo que, segundo a montadora, as fotos eram ‘um desenho sobre como seria o novo Polo’ -não o Gol.
Insisti na crítica diária no reconhecimento do falso ineditismo. Na quinta, novo ‘Erramos’ completou a correção.
A Redação conta que recebeu o material, reservadamente, de uma fonte. A busca das fotos na internet, para checar a exclusividade, foi malfeita (é fácil encontrá-las).
Perguntei por que não se consultou antes a Volks. Resposta: ‘Não seria suficiente para evitar o erro. Nenhum veículo da imprensa especializada em automóveis consulta as montadoras antes de publicar segredo da indústria, pois o papel da assessoria, historicamente, é o de sempre negar todo projeto de novos carros’.
‘E por um motivo simples: se a imprensa divulga fotos de uma nova versão de um modelo que já esteja sendo vendido (o novo Gol será lançado em junho), as vendas do atual despencam. O consumidor não compraria um carro zero-quilômetro que mudará em pouco tempo, pois, além de perder o ‘fator novidade’, teria um carro ainda mais desvalorizado na hora da revenda.’