Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Mário Magalhães

‘A memória , essa companheira dada a tantas traições, situa na virada da década de 1970 para a de 80 o comercial de um shampoo anticaspa na TV. Um ator dizia que o produto tinha cheiro de remédio, cor de remédio, aparência de remédio, mas não era remédio. O slogan se consagrou: ‘Parece, mas não é’.

A edição de domingo passado da Revista da Folha trouxe duas páginas (4 e 5) que à primeira vista se afiguravam como jornalismo. Selecionei 15 exemplos de como elas se assemelhavam ao espaço editorial da Revista, do design à estrutura do texto. Elenquei-os aqui

Como o shampoo, as páginas pareciam, mas não eram… jornalismo. O anúncio do guaraná Kuat tem o propósito de se passar por reportagem.

Havia, é verdade, o aviso ‘informe publicitário’. Mas era o único alerta para o caráter do que se lia e via, em contraste com a profusão de códigos indicando o contrário.

Na segunda-feira, escrevi na crítica diária (www.folha.com.br/ombudsman) a nota ‘Engodo publicitário’.

Começava assim: ‘A Folha não deveria aceitar anúncios produzidos com a intenção de ludibriar os leitores, mimetizando peça jornalística. O despudor da propaganda […] se enquadra na fórmula do engodo. O fato de o anúncio conter o aviso […] não desobriga o jornal de proteger os leitores da confusão’.

Na terça, a diretora de Revistas da Folha, Cleusa Turra, me enviou a mensagem: ‘A publicação do anúncio com recursos gráficos similares aos utilizados no corpo editorial da Revista da Folha está em desacordo com os padrões adotados pelo jornal’.

‘Houve falha no controle interno ao não impedir que tal iniciativa chegasse ao leitor. A concepção gráfica da Revista busca uma identidade visual que propicie leitura agradável mas que, sobretudo, permita ao leitor diferenciar claramente o material jornalístico do publicitário […].’

‘Nesse caso específico, a tarjeta ‘informe publicitário’ foi considerada insuficiente para alertar o leitor do conteúdo promocional.’

Assim como a Folha cumpre sua função ao investigar erros de empresas e do Estado, resolvi, na condição de representante dos leitores, apurar a trajetória do anúncio até o papel. O jornalismo que fiscaliza o poder em nome do interesse público deve estar sob amplo escrutínio.

Igreja x Estado

A assessoria de imprensa da Coca-Cola do Brasil -grupo ao qual pertence o Kuat- e a agência Giovanni, FCB, dona da conta publicitária da bebida, negam a intenção de iludir.

‘O texto veiculado estava claramente identificado como informe publicitário, de forma que o leitor pudesse concluir que se tratava de informe publicitário’, sustenta a agência.

Se não era para confundir, por que imitar? Eis o artigo 28 do código do Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária: ‘O anúncio deve ser claramente distinguido como tal, seja qual for a sua forma ou meio de veiculação’.

A Giovanni transmitiu o lay-out por e-mail à Folha em 5 de junho, pedindo aprovação do jornal. Comparei-o com o que saiu: só foram suprimidos fios que copiavam a Revista e aumentou-se a visibilidade do ‘informe publicitário’.

O anúncio também saiu na revista de ‘O Globo’, com outro desenho, semelhante ao desta publicação. A agência informa que o jornal carioca recebeu com antecedência o lay-out, mas impôs muitas mudanças para aceitá-lo.

De fato, embora em ‘O Globo’ alguns leitores possam tomar a propaganda como reportagem, a diferença de design é maior do que na Folha. E constam duas, não uma, tarjetas de alerta.

‘Nossa avaliação foi de que, apesar de todos os cuidados que tomamos, deixando claro duas vezes no alto que se tratava de um informe publicitário, nós erramos’, diz o diretor de Redação de ‘O Globo’, Rodolfo Fernandes.

‘O anúncio estava parecido demais com uma matéria, o que contraria nossas regras. É cláusula pétrea do jornalismo, faz parte do nosso contrato com o leitor, que matéria é matéria e anúncio é anúncio. O leitor tem o direito de ter essa informação de forma clara, não deve ter que procurar a diferença entre os dois.’

Se a agência errou ao formatar a peça publicitária, tropeço muito maior foi o da Folha. O jornal teve tempo, mas não rejeitou o anúncio. É princípio consolidado que Redação e setor comercial sejam autônomos como Estado e Igreja.

‘O interesse do leitor […] tem sempre prioridade sobre qualquer outro, inclusive o do anunciante’, determina o ‘Manual da Redação’.

Anúncio impróprio

A publicidade não é inimiga do jornalismo -sem ela, componente fundamental da receita, um jornal pode acabar se financiando de modo heterodoxo. Trata-se, contudo, de atividades distintas: a finalidade do jornalismo é informar.

A diretora de Revistas diz que a Redação só tem acesso prévio aos ‘anúncios irregulares, que interferem na diagramação e/ou que citam produtos editoriais’. Esses podem ser recusados. Por que não se recusou o do guaraná? Cleusa Turra: ‘Recebi e-mail comunicando a necessidade de autorização para um anúncio e não houve tal autorização por parte da Redação’.

A Giovanni relatou ao ombudsman que, no dia 21, a Folha pedira duas modificações no desenho: tipologia de letras da vinheta ‘comportamento’ e no parêntese ao lado.

‘Ao tomar conhecimento do ‘estilo’ do anúncio, solicitei alterações’, afirma Cleusa. ‘Por falha interna na transmissão para a gráfica, o anúncio enviado e publicado foi aquele cujo lay-out não tinha autorização da Redação’.

Não creio que tais mudanças resolvessem o problema.

Pena que os controles não tenham funcionado no domingo. Menos mal que, para a Folha, não resta dúvida sobre a impropriedade do anúncio.’’