‘Crítica de gastronomia do ‘New York Times’ na década de 1990, Ruth Reichl era tão obsessiva com a manutenção do seu anonimato que criou seis disfarces. Arriscou-se no restaurante Le Cirque na pele de um de seus personagens e, certa feita, com a cara limpa.
O atendimento para a jornalista foi mais generoso que para a desconhecida. Capricharam no serviço e vitaminaram as porções. ‘As framboesas das novas tortas tinham três vezes o tamanho das anteriores’, lembrou no livro ‘Alho e Safiras – A Vida Secreta de Uma Crítica de Gastronomia Disfarçada’ (Objetiva).
Ela ensinou: ‘Um dos requisitos básicos para um bom crítico de gastronomia é a habilidade de ser anônimo’. Evitava a convivência que poderia afetar suas avaliações: ‘Não vou a festas com chefs’, dizia.
Reichl não estava só. É diretriz da Associação dos Jornalistas de Comida, nos Estados Unidos: ‘As críticas devem ser feitas anonimamente sempre que possível. […] Críticos que tiverem sido reconhecidos precisam informar na crítica’.
Em uma década no jornal americano ‘Philadelphia Inquirer’, Craig LaBan se manteve incógnito. O segredo sobre quem está por trás do pseudônimo ficou ameaçado depois que em fevereiro saiu seu relato sobre um steak de R$ 28 que LaBan só faltou comparar a sola de sapato.
O estabelecimento o processou, alegando que o corte da carne não era o citado. Talvez a Justiça o obrigue a aparecer e perder o que os advogados chamam de segredo comercial.
Muitas casas de pasto nova-iorquinas mantêm dossiês para descobrir críticos em seus domínios, como contou a agência Associated Press em abril. Reúnem fotografias, descrição física, gostos e antipatias culinárias. Um jornalista tem dentes ruins. A mulher de outro prefere batom de cor manjada.
Quando Frank Bruni chegou a um restaurante, foi percebido. Tinham fotos suas, antídotos contra surpresas. Desde 2004 ele ocupa no ‘Times’ a função que foi de Reichl. Embora suas feições não sejam ignoradas, pois ele foi repórter e é autor de livros, no seu blog não há retrato seu atual ou antigo, para dificultar ‘flagras’.
O gato-e-rato entre ‘restaurateurs’ e críticos tem motivo evidente: quanto mais o comensal aprecia comida e serviço, melhor a cotação. Boas cotações resultam em maior movimento e caixa fornido.
Para o restaurante, está em jogo dinheiro. Para os jornalistas, a recusa a um produto artificial, que não é o mesmo oferecido à média dos fregueses.
Questões éticas
Esses procedimentos do jornalismo de qualidade não passaram despercebidos à Folha. O ‘Novo Manual da Redação’ afirmava em 1992: ‘O anonimato é importante, por exemplo, para testar serviços públicos ou particulares, como restaurantes’.
A versão de 2001 do ‘Manual’ recomendou no verbete ‘ética’: ‘Ao testar os serviços de um restaurante, por exemplo, é conveniente que o repórter permaneça no anonimato e pague a conta. De outro modo, sua avaliação poderia ficar comprometida por um atendimento especial ao qual seu leitor não teria acesso’.
No último dia 11, a regra foi emendada, e bancar a despesa tornou-se obrigação. Outro acréscimo: ‘Serão vedadas participações em eventos quando houver real ou aparente conflito de interesses’.
A Folha predica anonimato, mas não pratica. No dia 19 de abril, estampou duas fotos do seu crítico, Josimar Melo. Não surpreendeu. Em 5 de dezembro de 2004, publicara outras duas. Na internet, a agência noticiosa Folhapress veicula uma. O jornal não se importa em expor o profissional.
Nem ele, como se constata no seu blog, com foto no alto, e no seu site, que anteontem abria com uma imagem sua.
Há mais problemas. Melo, que se intitula ‘agitador cultural’ da gastronomia, foi promotor de eventos comerciais na área quando já era crítico. Criou o Boa Mesa, do qual se afastou, e o Mais.Paladar, que ocorreu em 2003.
Como empreendedor, convocou chefs para dar aulas, remunerando-os. Depois, como crítico, se pronunciou sobre eles na Folha. Um rapaz que trabalhou na administração do Mais.Paladar depois teve um restaurante novo seu visitado. A resenha apontou aspectos positivos e negativos e o classificou como ‘bom’.
Não é protocolar o registro: inexiste a mais remota indicação de uso do jornal em benefício próprio. Não se trata disso, mas de ‘real ou aparente conflito de interesses’ -entre quem julga os cozinheiros e quem já os contratou.
É justa a reputação de Josimar Melo como um dos mais qualificados jornalistas gastronômicos do país. Ao diletantismo e à troca de favores que vigoraram por tanto tempo (e estão longe da erradicação), ele contrapôs rigor e conhecimento. Entende de comida, escreve saborosamente.
Para o leitor, contudo, é ruim que a chance de o crítico da Folha, distante do anonimato, receber um filé frio seja muito menor que a do consumidor comum. O padrão do jornalismo de serviços deve ser igual ao de outros falsamente mais nobres -como bem formula o ‘Manual’.’
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‘Crítico gastronômico não vê problema’, copyright Folha de S. Paulo, 30/9/07.
‘Josimar Melo, 53, desde o começo dos anos 1990 é crítico gastronômico da Folha, que sempre pagou suas refeições. Pedi a opinião dele e do jornal.
A Secretaria de Redação afirmou: ‘A Folha considera ideal que o crítico mantenha o anonimato. Foi um erro ter publicado fotos de Josimar’.
O crítico: ‘O anonimato total, com a enorme profissionalização dos serviços de divulgação dos restaurantes, parece impossível. Em alguns meses os assessores de imprensa (que vieram de Redações, ou as visitam, e conhecem a cara dos jornalistas) já viram os críticos em suas visitas iniciais aos restaurantes recém-abertos, já os mostraram para os maîtres e chefs e garçons, que dali a alguns meses estarão trabalhando em outro restaurante e identificarão eles mesmos os críticos’.
‘De toda forma, nunca anuncio minhas visitas aos restaurantes, e em muitos casos não me conhecem. Mesmo quando conhecem, isso não afeta a qualidade da comida (que é meu critério de julgamento, para dar ou não estrelas […]).’
Sobre o evento de 2003: ‘Quando fiz o evento esses chefs foram contratados para dar aula. Foram pagos. Não fizeram favor ou deferência ao crítico. Se fizer crítica a um restaurante deles, farei com a isenção de sempre. Não fiquei ‘devendo’ nada a eles’.
‘O jornal freqüentemente pede a chefs de cozinha (ou escritores ou artistas de várias áreas) que façam algo -uma receita exclusiva, um poema inédito. As receitas não costumam ser pagas. São tratadas como material jornalístico (e o artista provavelmente se sente recompensado pela divulgação, não sei).’
‘Talvez o jornal pudesse correr o risco de ficar numa posição de credor do artista (que, não obstante, ele futuramente poderá criticar).’
Sobre o contratado para o Mais.Paladar cujo restaurante foi avaliado: ‘Ele foi contratado para trabalhar na organização. Era um funcionário. O evento acabou […], e no ano seguinte esse ex-funcionário abriu um restaurante’.’