‘COM UM PERFIL curto de Marco Maia, morto no Rio aos 51 anos, a Folha inaugurou na quarta retrasada uma seção fixa de obituários.
As 27 linhas bem costuradas e elegantes, como uma elegia subliminar ao estilista desaparecido, contrastavam com a prosa desenxabida à qual o jornal se habituou, exceções notórias à parte. Até anteontem haviam saído nove obituários, apenas um de mulher.
No Brasil, morrem mesmo mais homens, atesta o IBGE. Em 2005, para cada dez mortos do sexo feminino, houve 14 do masculino, o equivalente a 58% dos quase 1 milhão de óbitos documentados. Violência e trânsito, concentrados na juventude, determinam a desproporção.
Nada que se iguale aos 89% da Folha, cuja amostragem é ainda raquítica para se prestar a estatísticas. A tendência, contudo, reproduz um abismo comum à imprensa do Brasil e do exterior: até depois da morte as desigualdades de gênero sobrevivem.
Foi mais ou menos o que ouvi em maio de um colega, Timothy McNulty’s, do ‘Chicago Tribune’, diário americano no qual o ombudsman se denomina ‘editor público’.
Em novembro de 2006, ele constatou que desde janeiro daquele ano os homens correspondiam a 73% dos perfilados e as mulheres, a 27%.
Sem novidade. Três décadas antes, uma investigação acadêmica revelara que outros dois periódicos de prestígio, o ‘New York Times’ e o ‘Boston Globe’, imprimiam quatro obituários masculinos para cada um feminino. E as fotografias apareciam dez vezes mais nas memórias sobre cavalheiros.
Curioso, eu quis saber do comportamento da imprensa brasileira, cujo desencantamento pelos obituários sobreveio com o tempo. A Folha relançou-os e abandonou-os.
Os que se filiam à tradição americana tratam exclusivamente de pessoas de expressão, reconhecidas socialmente como importantes, ainda que não fossem celebridades.
Na revista ‘Veja’, a página ‘Datas’ veicula notas sobre as personalidades mortas na semana. De março a maio de 2007, as mulheres não ultrapassaram os 18%. No mesmo trimestre, na seção ‘Obituário’ do jornal ‘O Globo’, elas representaram 21%.
O jornal ‘Zero Hora’ ostenta maior equilíbrio, dois homens por mulher. A mudança decorre de determinação editorial: o obituário cuida tanto de famosos como de ‘anônimos’ da comunidade gaúcha.
Naquele período, a Folha contava somente com a seção ‘Mortes’, informando pouco mais que o nome de quem morreu. Em 1.517 registros taquigráficos, os sexos se equivaleram em 50%. É nesse espaço, mantido em Cotidiano, que agora se lê o obituário.
Na vida e na morte
Não é só após a morte que elas são minoria no planeta que o jornalismo retrata. No dia 16 de fevereiro de 2005, o Projeto Global de Monitoramento da Mídia acompanhou 12.893 notícias de televisão, rádio e jornais em 76 países.
Embora compusessem 52% da população mundial, as mulheres limitaram-se a 21% dos personagens dos relatos. Como ‘especialistas’ consultadas, a 17%. Em governos, a 14%. Sobrepujaram os homens em duas categorias, donas-de-casa (75%) e estudantes (51%).
A Folha não difere desse panorama, como demonstrou em 2004 o ombudsman Marcelo Beraba, ao divulgar levantamento da Coordenação de Artigos e Eventos: dos 730 artigos editados nos 365 dias anteriores na seção ‘Tendências/Debates’, meros 63 (9%) traziam assinatura feminina.
O Banco de Dados, responsável pela confecção de perfis biográficos de fôlego, produziu e guarda 73 textos: 62 (85%) sobre senhores e 11 (15%) sobre senhoras.
Esses arquivos ocupam-se de quem teve proeminência e que por alguma razão (idade ou doença) pode morrer em breve. Por sua relevância, suas partidas mereceriam reportagens extensas, e não a centimetragem reduzida do obituário da Folha.
Para anotação histórica, indaguei se havia um perfil biográfico pronto de Octavio Frias de Oliveira, o publisher da Folha morto aos 94 anos no finzinho de abril.
Não havia, respondeu a Secretaria de Redação: ‘O obituário foi escrito com base em textos elaborados no Banco de Dados e no perfil escrito por Engel Paschoal (‘A Trajetória de Octavio Frias de Oliveira’, Publifolha). Vários jornalistas também trabalharam na elaboração do texto. Por isso, não houve assinatura’.
Instantâneo do passado
É um guri de 23 anos o talentoso redator do obituário da Folha. Willian Vieira cursou jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina. Na sua opinião, o ‘New York Times’ é ‘modelo indiscutível para o gênero’. Subscrevo-a e acrescento o da revista britânica ‘The Economist’.
Um obituarista do ‘Times’, protagonista de uma reportagem de Gay Talese nos anos 1960, era mais calejado, cinqüentão. O ‘Sr. Má Notícia’ se surpreendia com a morte de quem já presumia morto havia muitas estações.
É que ele redigira o obituário com precocidade excessiva -os armários acumulavam 2.000 deles.
Dessa época, recordam-se nos EUA os free-lancers que escreviam os necrológios e só recebiam o pagamento no caso de publicação. Era um incentivo para incorporar abutres e urubuzar os vivos.
‘As mulheres e os negros, ao que parece, raramente morrem’, comentou Talese no perfil que no Brasil integra sua antologia ‘Fama e Anonimato’ (Companhia das Letras).
Pelo menos em relação às mulheres, tudo como dantes. Scholars estrangeiros identificam discriminação de gênero. Discordo: os obituários não discriminam, mas expõem a sociedade discriminatória. Refletem a hegemonia masculina no poder político, econômico, esportivo e cultural.
Não caberia, por suposto, nenhuma cota delirante para lograr uma simetria artificial que distorcesse os fatos.
O ‘Chicago Tribune’ comparou os obituários de 1998 e 2002. Em um ano, havia um redator. No outro, uma redatora. Deu na mesma.
De algum modo, os obituários mantêm parentesco com as seções sobre velhas edições -na Folha, ‘Há 50 anos’. Eles falam mais sobre o poder de décadas atrás do que do nosso tempo. Este se expressará nos obituários do futuro.
Gênero jornalístico
A Secretaria de Redação explicou a volta: ‘A Folha considera que os obituários, quando bem-feitos, são pontos de atração de leitura’.
Obituários fascinam em virtude de um paradoxo: ao anunciar a morte, contam a vida. Neles se desvelam grandes histórias. Como ensinou um dos meus primeiros chefes, Humberto Vasconcelos, gente gosta de gente.
Não que um sentimento algo mórbido ou nostálgico -a busca pelos contemporâneos de mocidade- não estimule alguns a seguir obituários. Mas o melhor deles é a vida.
Peça informativa com pinceladas opinativas, o obituário combina reportagem e análise. Configura um gênero do jornalismo.
Seus autores se tornam figuras marcantes nas Redações, alvo de gracejos sobre o ofício que parece, mas não é, agourento. Como sabido, o do ‘New York Times’ era o ‘Sr. Má Notícia’. Os companheiros se referem como ‘Boa Morte’ a um dos mais tarimbados brasileiros na função, e consta que ele odeia.
Vieira, o jovem da Folha, ainda não é tratado por apelido. Que ele seja tolerante, pois logo, logo vai ganhar o seu.’