Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O padrão Globo de qualidade prostituída

O atual estágio do capitalismo senil pode ser designado genericamente como performático, seja em relação a outros períodos históricos, pré-modernos, seja em relação a promessas e demandas econômicas, civis, sociais, políticas e culturais que emergiram no interior da modernidade.

Com esse argumento quero dizer que o capitalismo senil, como um camaleão, mimetiza e reprograma, sem cessar e sem exceção, a tudo: direitos civis, como os direitos ou demandas femininos de autonomia de decisão em relação ao próprio corpo, no que tange ao direito de aborto, por exemplo; direitos ou demandas de grupos ou perfis não heterossexuais, como o do casamento gay; os direitos e as aspirações relativas às etnias não europeias, como as de negros, índios, amarelos. Para esses direitos e demandas legítimos e surgidos no interior da modernidade a partir de lutas concretas, relativas a exclusões concretas, como a exclusão étnica e de gênero, o capitalismo produz um cenário ou teatro performático de sua realização, como se todas essas demandas estivessem finalmente sendo realizadas.

E a isso chamo de teatro ou performance inclusiva do capitalismo senil, tanto mais teatral e performático quanto mais a exclusão for a regra geral, a exclusão de sexualidades não heterossexuais, de mulheres, de negros, de índios, de muçulmanos, africanos, latinos, numa palavra, ainda que composta por três, sendo duas redundantes ou eco da outra: a exclusão dos excluídos de sempre.

Um verdadeiro sistema elitista brasileiro

E é precisamente no cenário dessas performances ou teatros inclusivos que o capitalismo senil é coerente com sua premissa histórica, inscrita em sua ideologia liberal, pois é aí que a livre iniciativa é levada a cabo através do mais puro e fascista darwinismo. O capitalismo senil produz seu teatro inclusivo captando indivíduos isolados, cooptando-os sistemicamente, tal que um negro, por exemplo, pode ser presidente do centro do imperialismo senil, performaticamente incluído para, a um tempo, teatralizar a ilusão de ótica do “sim, agora sim, o sistema é justo, flexível, inclusivo, pois um negro pode ser presidente do mundo”, embora o seja ou venha a ser desde que produza uma legião de excluídos; desde que sua inclusão seja o teatro inclusivo que tem como contraparte inevitavelmente o abandono e o genocídio dos excluídos – ou a guerra contra o planeta, como o excluído-mor.

É assim que a ilusão de inclusão passa a ocupar o lugar da inclusão de verdade, real, a partir de um efeito de real que substitui a realidade enquanto tal, pretendendo ser todo o horizonte do possível. Trata-se de um verdadeiro sistema de aparências inclusivas que chamamos de politicamente correto; sistema que tem o indivíduo isolado como protótipo ou ator que encarna em si a performance de inclusão, tornando-se o que usualmente chamamos de gente boa, demano, de o cara e assim sucessivamente.

Se, em meus artigos publicados aqui, no Observatório de Imprensa, tendo a me concentrar na TV Globo é porque ela é o canal de televisão que isoladamente ocupa a posição estratégica de ser ela mesma a encarnação midiática de um sistema de aparência politicamente correto. A TV Globo, no Brasil, é o canal por excelência da performance de inclusão como traço intrínseco do capitalismo senil e a realiza conscientemente, ilusoriamente, em sua grade geral, novela, filmes, jornais, programas de auditório, ecológicos, educativos, de modo que o conjunto de sua programação constitui igualmente o conjunto estratégico de um verdadeiro sistema elitista brasileiro (embora mimetize o americano) de performance inclusiva cujo principal objetivo é o de substituir a realidade enquanto tal, não espetacular, para produzir a ilusão geral de que o Brasil é o que a Globo encena performaticamente.

A dicotomia entre igualdade e diferença

Essa é uma estratégia (sub)imperialista nitidamente inscrita no ícone que define o título e a marca da TV Globo: o globo geográfico como representação, em escala, do planeta Terra. Não sem motivo, a performance e inclusão é também uma questão de escala, a performance ou escala da inclusão individual substituindo a inclusão coletiva ou a do mapa do Brasil como eco do mapa dos Estados Unidos da América, o qual, por sua vez, é a escala ou refração imperialista do globo terrestre ou, ainda, a escala da TV Globo como representação ou performance inclusiva, no plano televisivo, que nossas elites econômicas, sobretudo as do Sudeste, pretendem ou desejam, em escala, mapear, governar, impor, determinar, submeter, inventar, dominar, explorar ou, incluir ilusoriamente, enquanto concretamente incluem a si mesmas, a partir da exclusão geral de uma realidade humilhada, desprezada, esquecida, explorada.

Como o teatro, ela mesma da performance de inclusão dos excluídos, a TV Globo tem os seus isolados indivíduos performáticos (a família Globo), os quais constituem a encarnação ilusória do sistema de aparência politicamente correto global. É este, portanto, o papel que cumpre uma Xuxa, uma Ana Maria Braga, um Luciano Huck, um Faustão, um William Bonner, um Alexandre Garcia, um Toni Ramos, um Serginho, um Didi, Antônio Fagundes, um Jô Soares, uma Suzana Vieira, uma Angélica, um Galvão Bueno, além de outros: o papel de serem o padrão globo da performance de inclusão da diversidade étnico-cultural brasileira.

Cada um desses performáticos felizes incluídos ungidos globais desempenha o importante papel de levar adiante o sistema de aparência (sub)imperialista da TV Globo: o Brasil global, para inglês ver, midiaticamente em guerra contra o Brasil real; uma guerra paradoxal, por constituir-se através de armas de fantasia de inclusão, tal que a diversidade étnico-cultural-geográfica do povo brasileiro será tanto mais excluída quanto mais deixar-se levar por esse sistema de aparência (sub)imperialista, a serviço da guerra total do sistema de luxo do capital, a produzir inevitavelmente seus bombásticos lixos globais.

Do luxo ao lixo, o sistema de aparência da TV Globo é ridículo, patético, se não fosse ou fizesse parte de um projeto de conformação de perfis humanos igualmente performáticos, teatrais, americanizados e (sub)imperialistas. O propósito desse sistema de aparência televisivo-global é o de substituir, mimetizando, os fluxos vitais de variabilidade linguística, cultural, étnica, sexual, econômica, os quais, livres, podem transformar o Brasil – e países e regiões com traços de diversidades igualmente complexos e permanentemente variáveis – em um caldeirão de encontros de singularidades humanas com potência suficiente para, em devir, eliminar de vez as barreiras racistas, fundamentalistas, econômicas, machistas que impedem a constituição de uma humanidade do e para o comum, tal que a dicotomia entre igualdade e diferença deixa de existir pela simples razão de que a igualdade de destino – e de cuidado comum – passará a ser a via credível e inevitável para a produção de diversidades expressivas humanas, sem castas, sem classes, sem concentração de privilégios.

A (des)realização televisiva da diversidade

É para isto que serve, portanto, o sistema de aparência do padrão Globo de televisão, para colonizar a diversidade étnico-cultural-epistemológica brasileira, teatralizá-la, domesticá-la, tendo em vista duas estratégias:

  1. Produzir um saber – saber que é poder – sobre a diversidade étnico-cultural-epistemológica brasileira, tendo como modelos indivíduos isolados, a fim de tomar para a si a riqueza inesgotável de nossa diversidade de povos, como se toma para si matérias-primas quaisquer, o petróleo, por exemplo, e explorá-la simbolicamente, comercialmente, publicitariamente.

Tal como se faz no campo do modelo de economia extrativista – marca da periferia do sistema-mundo – a diversidade étnico-cultural-epistemológica brasileira é socavada, sufocada, extraída e estocada, como excedente, para o gozo exclusivo – inclusive o sexual – de perfis humanos isolados, de tal sorte que só estes podem usufruir economicamente – como famosos – da potência criativa inscrita no DNA de nossa diversidade étnico-cultural, como ocorre no contexto antes de tudo da música popular e do futebol, com seus jogadores e cantores famosos, cujos perfis humanos representam teatralmente a nossa diversidade;

  1. Constituir um padrão Globo que nada mais é que um sistema de aparência que mimetiza e concentra a potência expressiva e criativa de nossa diversidade étnico-cultural-epistemológica, tal que a própria Globo seja o Brasil virtual e editado da publicidade de nossa diversidade de povos.

O padrão Globo, portanto, constitui o sequestro de nossa diversidade de povos ao mesmo tempo que a substitui – ou pretende –, num contexto em que a diversidade roubada e extraída de si mesma se torna cindida, impedida de realizar-se coletivamente, porque, como um Dom Quixote, confunde sua diversidade concreta com a virtual sequestrada pelo padrão Globo, a partir de uma realidade que é bastante semelhante da relação alienada entre ricos e pobres, quando estes deixam de partir de seus pontos de vista e desafios comuns para agirem isoladamente como se fossem ricos. Com isso, a diversidade étnico-cultural-epistemológica brasileira deixa de realizar-se concretamente, e revolucionariamente, para (des)realizar-se televisivamente.

Um diplomático contato com diferentes perfis

É óbvio que esse sequestro da diversidade étnico-cultural-epistemológica brasileira não é produzido apenas pela TV Globo. Os diversos canais privados de TV do Brasil constituem um verdadeiro sistema produtivo de confecções de subjetividades e cada canal – quase sem concorrência – capta um aspecto de nossa diversidade étnico-cultural-epistemológica a fim de fazer ou realizar seus respectivos negócios com ela.

Se me detenho, por sua vez, no caso Globo é por causa de seu projeto (sub)imperialista eufemisticamente chamada de padrão Globo de qualidade; padrão cujo verdadeiro inconsciente político-estratégico é o de produzir um perfil ISO 9000 de classe dominante igualmente (sub)imperialista para administrar os negócios relativos à gestão do extrativismo simbólico-produtivo da diversidade étnico-cultural-epistemológica brasileira.

No atual quadro de funcionários da TV Globo, o apresentador de programa de auditório Luciano Huck é o exemplo cabal de perfil ISO 9000 por excelência, que serve ou deve servir como modelo para a produção em série de uma classe média brasileira ISO 9000, apta, com jogo de cintura, a ser a gestora da diversidade étnico-cultural-epistemológica da população brasileira, no contexto performático do capitalismo senil.

Não é por acaso que Luciano Huck apresente um programa que tenha o sugestivo nome de Caldeirão do Huck, no qual e através do qual ele funciona como o mediador “gente boa” da performática agitação alquímica da diversidade populacional brasileira. Huck é uma espécie de cozinheiro global da multiplicidade de perfis humanos do Brasil e sua função-Huck é a de temperar-gerir nossa multiplicidade, adaptando-a ao padrão Globo, o que só é possível com um tipo como ele, teatralmente simples, disponível, legal, plástico e desdobrável, traços performaticamente utilizados para o estabelecimento de um diplomático contato com os mais diferentes perfis brasileiros: desempregados da periferia, exilados econômicos que trabalham e vivem em países como os Estados Unidos, favelados, líderes comunitários, cantores populares, drogados e ex-drogados, traficantes e ex-traficantes; presidiários e presidiárias e assim por diante.

Um sistema de aparência programado

Huck é suficientemente performático para lidar com a diversidade, venha de onde vier, em nome do padrão Globo de televisão. Ele tem, portanto, o rosto publicitário da classe média que o sistema de aparência global tem como ideal de ego para governar o Brasil. Não é, por isso mesmo, circunstancial que ele seja amigo de um político como Aécio Neves, do PSDB, porque tal como este, Huck é a encarnação ilusionista de uma classe média ideal para a gestão, sob o ponto de vista da TV Globo, da multiplicidade populacional brasileira no interior do capitalismo senil: é plástico, jovem, divertido e consegue se adaptar em qualquer situação, com jogo de cintura cosmopolita.

É por isso que o padrão Globo de qualidade é igualmente o padrão PSDB de qualidade, com a vantagem de que não precisa ser eleito para governar, mapear, domesticar, explorar e se apropriar das potências criativas, produtivas e expressivas de nossa multiplicidade populacional. É igualmente por isso que a TV Globo pode substituir o PSDB, como Partido da Imprensa Golpista, porque ela é o performático ideal de ego do sistema de aparência desejável para a gestão do (sub)imperialismo brasileiro, de tal sorte que é possível dizer que a TV Globo é a performática TV do Partido da Social Democracia Brasileira, que, por sua vez, é uma instituição político-eleitoral de uma fração ou facção que se julga com o direito divino de governar o Brasil, como exportadora-extrativista das energias vitais do Brasil para o centro imperialista do capitalismo senil, EUA.

O padrão Globo, assim, é o editado sistema de aparência programado para, eternamente, nos prostituir como povos.

******

Poeta, escritor, ensaísta e professor da UFES