Tuesday, 03 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

O último suspiro do baratismo

Com a morte de Hélio Mota Gueiros, no dia 15, aos 85 anos de idade, em Belém, de insuficiência renal, fecha-se a sepultura derradeira no cemitério do baratismo no Pará. Nenhum outro baratista foi tão longe na rota do poder, exceto o chefe do maior agrupamento político que se formou no Pará republicano.


O coronel (general na reserva do Exército) Joaquim de Magalhães Cardoso Barata foi o eixo da disputa pelo poder no Pará de 1930, quando chegou como tenente revolucionário, a 1959, quando morreu, de câncer, aos 71 anos, no exercício (pela terceira vez, a primeira através de eleição direta, as outras na condição de interventor federal) do cargo de governador do Estado.


Durante esse período, permaneceu com o mando direto em suas mãos por 11 anos. Nos outros momentos usou de todos os meios para voltar a ser o ‘Caga-Raios Palácio’, nome literário que lhe deu Haroldo Maranhão, neto do seu maior inimigo, o jornalista Paulo Maranhão, no romance Rio de Raivas, fonte preciosa de informação (além de prazer), à falta de uma bibliografia à altura dessa saga – meio tragédia, meio farsa.


Linguagem casta


Hélio Gueiros ensaiava se tornar advogado, aos 29 anos, dando uso ao diploma que obteve na Faculdade de Direito do Ceará, onde nasceu, quando Barata o convocou para uma missão que, sob a aparência de iniciação em carreira auxiliar do poder judiciário, era – acima de tudo – política: ser promotor público em Santarém.


Como muitos jovens de hoje, Gueiros não queria ir para o interior (nunca quis, até o fim da vida). Preferia a vida citadina. Mas seu pai, o pastor protestante Antônio Teixeira Gueiros, o advertiu: recusar um ‘pedido’ do coronel Barata era candidatar-se ao seu ostracismo pessoal; nunca mais seria lembrado.


Embora tenha sido o autor de uma das frases mais tristemente célebres da história do Pará (‘lei é potoca’), o então governador constitucional cercava-se de advogados e bacharéis. Mandava-os para a polícia e as comarcas do interior, dois dos seus principais instrumentos para impor suas decisões e imobilizar os adversários e inimigos, alguns dos quais, como Paulo Maranhão, dono da Folha do Norte, eram implacáveis.


O lugar escolhido para Gueiros era o segundo colégio eleitoral e o segundo pólo econômico do Estado (já perdeu ambas as posições), mas ele, mal-acomodado nas vestes talares, demoraria pouco tempo em Santarém, onde fincou raízes uma das fontes do antibaratismo, o notável advogado Alarico Barata, que transferiu esse patrimônio ao filho, o advogado beletrista Ruy Guilherme Paranatinga Barata, poeta desde o nome.


Logo Hélio Gueiros estava de volta a Belém – e para cumprir uma tarefa ainda mais importante, ou pelo menos mais ajustada às suas qualidades: assumir a chefia de O Liberal, um jornal que os amigos do rei compraram, cotizados, e transferiram para o nome do soba, tornando-se seu único bem patrimonial quando morreu, já sem as ferozes inimizades de antes.


Era para que Barata pudesse responder a outros raios, disparados na sua direção do alto do Folharal por Palma Cavalão, outro nome literário que Haroldo Maranhão encontrou para o temido avô nas leituras de Eça de Queiroz, um dos clássicos portugueses que estavam na origem da boa escrita dos personagens belenenses dessa época, uma época que, pelo padrão atual da educação brasileira, não volta nunca mais. Antes, ofendia-se em linguagem casta. Hoje, a linguagem é a própria ofensa, independentemente daquilo a que sirva.


Ironia tosca


O jornalismo foi a seara na qual Hélio se sentia mais intimamente realizado. Escrevia com facilidade e graça, com humor e ironia, inteligível a qualquer um e fazendo sua a voz das ruas (título, aliás, de coluna criada na década de 50 para abrigar as verrinas do velho Maranhão na primeira página da sua Folha Vespertina). Gueiros foi de uma geração de jornalistas para as quais o estilo importava mais do que o fato e a versão, porque acrescida de todos os componentes possíveis para a sedução do leitor, devia prevalecer sobre a verdade, em geral prosaica, pedestre, cansativa de procurar.


Entendia-se esse tipo de jornalismo numa era de lutas políticas violentas e em função de uma característica marcante no Pará: a busca incessante pelo poder plebiscitário. A quem não lia pela cartilha do baratismo só restava se tornar antibaratista. Como não havia duelo de idéias, justaposição de programas e confronto de visões do mundo, o que contava eram os instrumentos de poder, os mecanismos para chegar ao topo e, uma vez atingida essa posição, favorecer os parentes, amigos e correligionários. Para que um grupo pudesse subir, outro tinha que ser apeado.


A luta política sempre foi uma dissipação de energias e oportunidades no Pará. Não surpreende que o modo de crescimento do Estado se assemelhe ao do rabo de cavalo: quanto mais cresce, mais vai para baixo. Os donos do poder se dedicam a saquear o patrimônio público e a destruir os que se antepuserem em seu caminho, reprimindo ou bloqueando no nascedouro as novas lideranças. Com maior ou menor sofisticação, sempre foi assim. Continua assim.


Durante os nove anos em que passou pela máquina do judiciário, posta a funcionar para abrir as exceções da lei em favor dos amigos, da polícia (por via do pai, o pastor Teixeira Gueiros, uma estampa de respeitabilidade indispensável para carimbar as arbitrariedades dos baratistas) e da imprensa (onde se adestrou na polêmica e na panfletagem), Hélio cultivou os elementos que lhe iriam ser vitais no novo caminho que assumiria, aos 33 anos: a política.


Embora com o apoio do ainda poderoso padrinho, ele ficou na suplência de deputado estadual em 1958, pelo dominador PSD (Partido Social Democrático). Apenas na eleição seguinte, de 1962, conseguiu integrar a hegemônica bancada pessedista. Destacou-se como orador, graças ao seu raciocínio rápido e o tom zombeteiro nas expressões, tornadas ainda mais caricatas pelo timbre agudíssimo da sua voz (sobre o qual seu filho, Hélio Gueiros Júnior, daria um testemunho histriônico no livro que escreveu sobre a campanha de 1994 como candidato a vice-governador, num lance de oportunismo pelo qual Almir Gabriel pagaria caro quando o Gueiros menor o substituiu na interinidade). E assim se tornou líder da bancada.


Foi preso em conseqüência do golpe militar que depôs o presidente João Goulart, em 1964, apoiado nacionalmente pelo PSD em aliança com o PTB getulista. Mas não foi atingido por qualquer outra punição, talvez pelo seu comportamento ambíguo na Assembléia Legislativa. Não atacava frontalmente os novos donos do poder e até apoiou a cassação do mandato do deputado Benedito Monteiro, acusado de subversão. Nessa época Hélio já contava com um cartório judicial, que Barata lhe concedeu, e que viria a ser sua principal fonte de sobrevivência durante certo tempo, sobretudo durante as vacas magras da ditadura militar.


Em 1965 foi candidato a vice-governador na chapa do marechal Zacarias de Assunção, que impusera a maior derrota ao baratismo, em 1950, quando a oposição se uniu (como não mais voltaria a repetir) em torno da Coligação Democrática Paraense (CDP) e não permitiu a volta de Barata ao maior cargo público do Estado. Sempre utilizando a bandeira do antibaratismo, o militar se elegeria senador ao fim do seu mandato de governador. Mas não se vexou em juntar-se aos inimigos do passado para tentar novamente o governo, em 1965, na última eleição para esse cargo pelos próximos 17 anos.


O militar vencedor, o coronel Jarbas Passarinho, conseguiu dar ao seu candidato, o major Alacid Nunes, a quem nomeara prefeito biônico de Belém, uma vitória arrasadora sobre o exército Brancaleone de baratistas e antibaratistas. Mas Hélio cumpriu seu mandato de deputado estadual até o fim. Em 1967 assumiu como deputado federal, eleito pelo MDB, o partido da oposição consentida no regime bipartidário imposto pelos militares com o fim da IV República, iniciada em 1946.


Hélio sobreviveu até o Ato Institucional nº 5, que pôs fim ao que restava de liberdades e garantias democráticas, estabelecendo a ditadura plena. Seu mandato foi cassado e seus direitos suspensos, como centenas de outros políticos e personalidades públicas. Parecia que então ele realizaria sua vocação de jornalista, da qual se distanciara em 1965, quando deixou a direção de O Liberal. O jornal já não era mais o porta-voz partidário do baratismo. Por uma das muitas ironias toscas da política paraense, foi comprado pelo empresário Ocir Proença para promover a candidatura de Alacid Nunes, já que a Folha do Norte, ainda na liderança, pulara o muro para aderir ao hibridismo inconvincente da candidatura de Assunção.


Censura inaceitável


Quando voltou a O Liberal, Hélio lá encontrou um novo dono: o comerciante e colunista social Romulo Maiorana, que assumiu O Liberal quando ninguém o queria, cumprida sua missão com a eleição de Alacid. Proibido de exercer sua profissão, Hélio teve que se valer de pseudônimos e de estratagemas de Romulo para ter seus escritos publicados. Logo ele encontrou um novo instrumento de poder na coluna Repórter 70, para a qual ele mandava notas invariavelmente apimentadas, ao gosto de todos. Contava com a co-autoria de Newton Miranda, ex-vice-governador de Aurélio do Carmo, ambos também cassados.


Hélio voltou a ter influência e prestígio, mas agora em função do apoio que recebia do dono do jornal. Romulo conseguiu se equilibrar em dois pólos de sustentação: os remanescentes do baratismo, que ainda controlavam determinados setores da vida local, e os militares e seus associados, cujo domínio se expandia. Permitiu que o Repórter 70 se tornasse uma das caixas de ressonância de um político novo, filho de um dos mais destacados baratistas, o ex-deputado estadual Laércio Barbalho.


Presença constante na coluna, Jader Barbalho teve fulminante carreira como deputado estadual e federal, consolidando-se como líder da oposição institucional ao regime. Mas em 1982, quando se apresentou como candidato ao governo, na primeira eleição direta para esse cargo desde 1965, Romulo foi pressionado a se definir. Do outro lado estava Jarbas Passarinho, disputando a reeleição para o Senado, e o empresário Oziel Carneiro, candidato ao governo.


Pela primeira vez o general de plantão no Palácio do Planalto, João Figueiredo, não contava com a adesão do governador do partido oficial. Alacid Nunes rompera com seus companheiros de arma porque não queria devolver o poder estadual ao seu ex-padrinho, Jarbas Passarinho, como acertara perante o presidente da república. Preferiu apoiar o adversário da véspera. Brasília teve que apelar para todos os recursos, que incluíam o grupo Liberal, muito reforçado pela concessão, em 1973, de um canal de televisão, que passaria a integrar a Rede Globo de Televisão, a favorita do rei castrense.


Desta vez Romulo não pôde se aliar aos seus companheiros de viagem baratistas, com os quais se juntara desde que chegara a Belém, em 1953, como um livre atirador no comércio, e dos quais se tornara mais íntimo ao casar com Déa, sobrinha de Barata. Hélio Gueiros abandonou O Liberal e montou sua trincheira num jornal ainda precário, o Diário do Pará, que o governador de São Paulo, Orestes Quércia, proporcionara ao seu correligionário paraense.


Apesar dos ataques furiosos que desfechou contra Romulo, Hélio Gueiros se reconciliou com ele. O acerto de contas aconteceu num restaurante na Cidade Velha. Numa entrevista à jornalista Ana Célia Pinheiro, em 2009, Hélio disse que Romulo só o aceitou de volta por ter sido ‘a única pessoa que brigou comigo e não me chamou de contrabandista’. Referendando essa declaração, da qual foi a única testemunha e à qual nunca se referira até então, Gueiros garantiu que, nos seus virulentos artigos no Diário, ‘não bati no passado’.


Qualquer pessoa que leu essas colunas na época ou delas tomou conhecimento depois sabe que isso não é verdade. Hélio visou principalmente Déa Maiorana, a quem Romulo precisou convencer a aceitar a reaproximação. Ela se sentia tão insultada que só aprovou a iniciativa do marido quando ele jurou que Hélio não fizera o que lhe era atribuído.


A pacificação era necessária porque Gueiros, feito senador por obra e graça de Jader Barbalho em 1982, seria seu sucessor no governo, como maneira de consolidar uma nova versão do baratismo. A adesão do poderoso grupo Liberal afastaria qualquer risco de derrota, poupando o candidato de fazer o que detestava: participar da campanha, ir ao interior, trabalhar.


Só havia uma pequena pedra no meio do caminho: o distanciamento que O Liberal foi ampliando ao longo da primeira gestão de Jader, sobretudo a partir de 1984, quando comecei a denunciar a corrupção no governo na minha coluna diária e, freqüentes vezes, no Repórter 70, do qual passei a ser o principal redator.


Por isso mesmo me tornei o alvo número um dos ataques da corte jaderista. Como eu sempre retrucava e contra-atacava, o embate se tornou duro, agressivo. Com a mudança dos seus interesses e em virtude da grave doença que o acometeu, Romulo não suportaria a ofensiva dos antigos baratistas e dos seus sucessores. Tomei a iniciativa de pedir demissão para poupá-lo, mas ele recusou. Garantiu que manteria minha liberdade em seu jornal e aceitou que eu não partilhasse a reconciliação com Hélio Gueiros, a quem dirigira uma longa carta pouco antes da posse, em 1987, alertando-o sobre as responsabilidades que ia assumir, do alto dos seus 60 anos.


Mas Romulo censurou um dos meus artigos, justamente sobre Jader Barbalho. Não aceitei e saí da empresa. Como parecia que eu estava disposto a uma medição de forças pessoal com Jader, Hélio imaginou me usar para atacar aquele a quem tanto devia e tratava por estadista de público.


Fogos fátuos


Ao contrário do que ele disse a Ana Célia, era fundado o receio de Jader de que seu sucessor acabasse por criar um novo eixo de poder, fechando as portas para seu planejado retorno ao governo, em 1990. Hélio tinha um candidato no colete: o médico Henry Kayath, um dos mais brilhantes baratistas, o último secretário estadual da fazenda do velho PSD.


Jader trouxe Kayath de volta do Rio de Janeiro, onde o médico se estabelecera numa clínica conceituada, mas o queria no seu redil, sob o seu controle. Kayath tinha planos mais ambiciosos, que seu amigo governador podia viabilizar. Enquanto a dupla se preparava para romper com o patrono, Jader se antecipou: conseguiu que o ministro do Interior, João Alves, demitisse Kayath, a bem do serviço público, da superintendência da Sudam, onde Jader o havia colocado, cortando-lhe a ascensão. Vendo sua estratégia fracassar, Hélio decidiu escancarar sua oposição a Jader, mantida até então nos bastidores, e patrocinar a candidatura de Sahid Xerfan, junto com o grupo Liberal.


Seguiu-se uma das mais violentas campanhas eleitorais da história paraense. Ao final, Jader foi o vencedor. Seu carisma superou a máquina oficial e a força dos veículos de comunicação da família Maiorana, esquecida das mágoas profundas e recentes para combater o maior dos seus inimigos. Sem mandato, Hélio comprou um espaço no Jornal Popular, de Silas Assis. Aproveitou-se mais uma vez do anonimato para atacar inimigos de sempre e amigos de ontem.


Quando rompeu com Silas, este não hesitou em reproduzir os artigos de Hélio com o nome do seu verdadeiro autor, que não poupou nem o seu candidato ao governo. A mordacidade em relação a Sahid Xerfan tinha uma explicação: encerrada a campanha, com os credores à sua porta, o ex-prefeito cobrou a participação do ainda governador na conta. Hélio respondeu-lhe com outra pérola da fraseologia política ao tucupi: dívida de campanha não se paga. E não pagou. Coube a Xerfan se desfazer do seu patrimônio para honrar os compromissos. Foi o fim da sua carreira de empresário.


Quanto a Hélio, tratou de abrir caminho para sua volta. E assim decidiu se vingar de mim, que não servira aos seus propósitos de minar a imagem de Jader, já associado a enriquecimento ilícito em cargos públicos. Ao me dar informações privilegiadas sobre os maus feitos do seu antecessor, o governador atirava pedras pelas minhas mãos e escondia a mão. Acontece que eu descobri que seus filhos, amigos e apaniguados enriqueciam à sombra do seu poder, tal como acontecera com Magalhães Barata. E isso ele não tolerou, principalmente por ser a pura verdade, indesmentível. Foi para publicar verdades incômodas como essa que criei este jornal.


Apenas um mês depois de deixar o governo, em maio de 1991, Hélio me mandou uma carta de 65 linhas, em linguagem chula e pornográfica, para me ofender. O almirante Mário Jorge da Fonseca Hermes, que comandara o IV Distrito Naval quando Gueiros governara o Pará, ao ler aquele texto, confessou que jamais vira um documento público tão nojento. Recomendou ao povo do Pará que não mais concedesse qualquer cargo público ao autor daquela ‘coisa’. Mas o povo preferiu agir de outra forma, elegendo Hélio Gueiros prefeito de Belém dois anos depois.


Acreditando nas suas fantasias, na revisão distorcida do passado que fazia constantemente, o prefeito acreditou também que podia eleger um sucessor qualquer que fosse a pessoa. Não conseguiu: o PT, que nunca fora competidor real em eleição majoritária, chegou finalmente à vitória com Edmilson Rodrigues.


O problema era o candidato, Ramiro Bentes, pesado demais, reagiu o prefeito. O papudinho, o doutor Hélio, o homem do povo, este era imbatível. E por isso Gueiros quase não fez campanha (e, desta vez, não tinha um Barata ou um Jader para carregá-lo), quando se candidatou ao Senado, em 1988, tendo o filho, Helinho, como suplente.


Sofreu então a maior das suas derrotas, num bisonho terceiro lugar, com apenas 25% dos votos. O eleito (com 36%) foi seu ex-aliado, Luiz Otávio Campos, que se mudara para o reduto de Jader, autor da ordem de prisão vexatória que sofreu em 1991, por ilegalidades apontadas na Secretaria dos Transportes, no governo de Gueiros. Ana Júlia Carepa ficou em segundo lugar, com 34%. A política lhe fechava as portas.


Para arrematar, em 2008 Gueiros foi condenado pela justiça federal à suspensão dos seus direitos políticos por cinco anos e multa equivalente ao valor do prejuízo que causara por irregularidades na prestação de contas de 24 mil reais do fundo partidário como presidente do PFL (hoje, DEM). Também ficou proibido de contratar com o poder público e de receber benefícios ou incentivos fiscais. O dinheiro fora gasto ilegalmente com gratificações natalinas e festas de final de ano, ou em despesas não especificadas, com notas fiscais rasuradas e fora de validade.


Talvez ele nem se importasse com isso. Lei, afinal, não é potoca? Hélio Mota Gueiros nunca teve compromisso sério com ela, nem com a verdade histórica, nem com o seu currículo. Podia permitir-se dar as mãos ao ex-amigo que acusara pouco antes de ser ladrão, ou voltar à convivência de alguém cuja família denegrira. Tudo isso eram detalhes, fogos fátuos numa girândola de interesses mais duradouros: os seus.


Alma mimetizada


Pai atencioso, amigo dos seus amigos, Hélio era uma companhia adorável para conversas sem tempo certo de duração. Seus olhos brilhavam quando seu interlocutor anunciava que tinha uma novidade para lhe contar, sobretudo se era um fato secreto, reservado – uma boa fofoca. Durante o tempo em que ele me abria as portas do Palácio Lauro Sodré para conversas a dois, eu é que precisava lembrá-lo de que havia gente na ante-sala com audiência marcada à espera do seu chamado. Se dependesse apenas do que ele queria, ficaríamos ali por horas a papear sobre o presente e o passado, os acontecimentos e as pessoas. E às vezes ficávamos mesmo por muito tempo nessa conversa de jornalistas bem informados.


O diabo é que ele tinha poder para exercer e o fazia com base na alquimia de golpes e tramas aprendidos na escola de poder do baratismo, um laboratório inesgotável dessas artimanhas e incivilidades. Hélio Gueiros nunca devia ter ido além de uma redação de jornal, que era o seu espaço por excelência e sua arte maior (embora não necessariamente melhor). Ao menos se podia combatê-lo também com palavras, argumentos, raciocínios e estilo, sem os danos acarretados pelo desempenho de cargos públicos, em especial o maior deles, o de governador.


O que Hélio Mota Gueiros aprontou graças a esses poderes exigiria, para ser relatado, um grosso volume de histórias. Centrado em si, ele prejudicou pessoas e instituições em todos os lados do espectro e às vezes também as beneficiou, ficando-se sem saber qual o saldo da ação dessa metralhadora giratória. Sintomaticamente, fez o bem e o mal aos dois grupos que dominam a comunicação (e a política do Estado), em torno de O Liberal e do Diário do Pará.


O Diário, ao qual sua vinculação era mais recente, abriu quatro páginas ao seu necrológio, com uma chamada mais destacada na capa. Já O Liberal, do qual chegou a ser diretor e com o qual sua relação era mais antiga, deu-lhe apenas uma página e chamada mais discreta na capa. Ainda devia ser travoso o gosto de alguns episódios, como no final do mandato de prefeito, quando deixou para Edmilson Rodrigues dívida de mais de um milhão de reais com os veículos de comunicação da framília Maiorana.


Hélio se foi, arrastando consigo os últimos vestígios do baratismo, mas os Barbalho e os Maiorana prosseguem a disputa polarizada e plebiscitária, que tem sido a marca e a principal fonte da tragédia do Pará, como se vivêssemos na Florença dos Médici ou na Sicília dos mafiosos.


Requiescat in pacem, é o que se desejaria – ma non troppo, como acrescentaria o italiano, tão personagem no enredo quanto o cearense que se mimetizou na alma dos paraenses e saiu desta aclamado pela versão que deixou plantada na mente dos que sabem da história pelo que foi dito e não pelo que foi feito.

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Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)