Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Osvaldo Martins

‘Toda generalização é perigosa – sobretudo em um país como o Brasil, tão marcado por desníveis e contrastes, sociais e regionais. É perigoso, e até irresponsável, discorrer sobre o ‘jovem’, ou a ‘mulher’, sem delimitar com clareza a condição econômica, a faixa etária e a região do país em que vive o grupo objeto da análise. Expressões como ‘o jovem brasileiro’ ou ‘a mulher brasileira’ são ocas e, portanto, descabidas. O mesmo vale, com mais razão, para o conceito de ‘público’, um vocábulo genérico por natureza.

Quem tem a responsabilidade de lidar com a coisa pública é compulsoriamente condenado a renunciar a alguns hábitos – legítimos, diga-se – cultivados no cotidiano da vida privada. Quem exerce função pública deve ter, no mínimo, espírito público. Isso inclui abrir mão de preferências pessoais e até mesmo de amizades, quando houver conflito de interesses. O homem público é um servidor público.

É comum pessoas com mais de 50 anos exaltarem as virtudes do ensino público dos seus tempos de escola. Na capital paulista a referência era o Caetano de Campos, colégio estadual de excelente qualidade. Em Santos era o colégio Canadá e, pelo Estado afora há em cada grande cidade a lembrança dos ‘bons tempos’ da boa escola pública. O que poucos lembram é que aquela escola pública era cruelmente elitista, feita para poucos, pela simples razão de que havia pouquíssimas delas à disposição da clientela. A esmagadora maioria das crianças estava, mais do que hoje, no ensino particular ou em escola alguma.

O serviço público tem sim a obrigação de ser bom, mas deve também chegar ao maior número possível de pessoas. E o que a TV Cultura tem a ver com isso? Tudo.

Os telespectadores da Cultura que me honram com sua atenção, escrevendo em média 60 e-mails por dia, são em geral apaixonados pela emissora. Ótimo. Acho até que a Cultura tem mais torcedores que telespectadores, o que também é ótimo. Mesmo quem não a assiste regularmente gosta da Cultura pelo simples fato de que ela existe. Concordo, pois é quase um luxo, em um país como o Brasil, manter-se uma televisão pública há 35 anos. Cada telespectador tem todo o direito de expressar a sua opinião pessoal, individual, sem a obrigação do tal espírito público.

Só que os telespectadores da Cultura são muito poucos, como poucos eram no passado os alunos matriculados na escola pública. Quem estava dentro gostava, e até hoje agradece a boa formação que teve. Mas, e os milhões de excluídos? Assim como o ensino regular, uma televisão pública deve ser boa (é sua obrigação) mas deve ter também a ambição de alcançar o maior número possível de pessoas, universalizando o benefício dos seus conteúdos. Além do mais, TV de sinal aberto é meio de comunicação de massa.

Mantida, em cerca de 80% de suas receitas, pelo Tesouro do Estado de São Paulo, a TV Cultura deve perseguir a meta de oferecer serviço público de qualidade a todos os contribuintes e, ainda, de quebra, estende-los generosamente por todo o país. Isso quer dizer que até mesmo um indigente, ao comprar uma caixa de fósforos e pagar o ICMS embutido no preço, está indiretamente contribuindo para manter a TV Cultura, ainda que não tenha televisão em casa, ou nem mesmo casa. Ele também faz parte da ‘assembléia de acionistas’ a que sempre me refiro para caracterizar o conjunto de telespectadores. Não é justo que todos paguem e uns poucos usufruam.

O grande desafio da TV pública, hoje e sempre, é: como ampliar o seu alcance, refletido nos índices de audiência, sem abrir mão da qualidade? As respostas começam a aparecer nas pesquisas, que não podem ser (e não são) limitadas às pessoas que já assistem a Cultura. Seria como, nos anos 1950, perguntar ao aluno do Caetano de Campos o que acha do ensino público. Em outras palavras, não se trata de saber, apenas, por que 1% do universo telespectador elogia tanto a Cultura, mas por que 99% têm outras preferências.

Seria insensato pretender 100% de audiência, da mesma forma que é inadmissível contentar-se com 1%. Se a TV Cultura conseguir chegar a 10% dos lares com uma programação de qualidade, aí sim, estará cumprindo razoavelmente a sua finalidade.

O desafio vai mais longe. Como ser independente, vivendo da mesada do Tesouro? O ideal é o equilíbrio orçamentário entre a contribuição do Estado e a do setor privado. Daí a necessidade de aumentar as receitas de publicidade, apesar dos protestos dos puristas que preferem a ‘sua’ televisão livre do contágio infeccioso da propaganda.

Telespectadores mais apaixonados me escrevem protestando contra críticas que faço à programação, especialmente ao jornalismo. Alguns chegam a imaginar que estou aqui para destruir o que está feito, da forma que está feito. Não se trata disso – meu papel é outro. Respeito sinceramente a opinião de todos e me reservo o direito de, eventualmente, discordar. É fora de dúvida que a televisão feita na Cultura não seduz nem 5% do público – e isso me preocupa, até por dever de ofício. Não fui convidado pela Fundação Padre Anchieta para entrar de sócio em um clube, não faço parte de nenhuma confraria, não comando ninguém e também não estou subordinado a ninguém. Defendo, sem meias palavras, uma tese muito simples: serviço público para poucos não é público – ainda que aqueles poucos se sintam bem atendidos.’