Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Paul Krugman

‘O ‘U.S. News & World Report’ publicou, alguns meses atrás, que, desde o dia em que tomou posse, a administração Bush cobriu o governo com ‘um véu de segredo’. Após o 11 de Setembro, o sigilo da administração passou a não ter limites, tanto assim que Ari Fleischer, antigo porta-voz de George W. Bush, chegou a avisar que os americanos ‘precisam vigiar o que dizem, vigiar o que fazem’. Os cidadãos patrióticos deviam aceitar a versão dos acontecimentos oferecida pelo governo e não fazer perguntas incômodas.

Mas algo notável vem acontecendo: cada vez mais pessoas de dentro da administração estão encontrando a coragem necessária para revelar verdades em questões que abrangem desde a poluição com mercúrio até a guerra contra o terror.

Quando lemos as inevitáveis tentativas de denegrir o caráter daqueles que abrem o bico, é importante nos darmos conta de até que ponto é arriscado revelar verdades incômodas sobre o governo Bush. Quando o general Eric Shinseki disse ao Congresso que o Iraque no pós-guerra exigiria uma força de ocupação grande, foi o fim de sua carreira. Quando o embaixador Joseph Wilson revelou que o discurso sobre o Estado da União de 2003 continha informações sabidamente falsas, alguém na Casa Branca destruiu a carreira de sua mulher, revelando que ela era agente da CIA.

O mais recente a adiantar-se para revelar o que sabe é, evidentemente, Richard Clarke, ex-especialista em contraterrorismo do atual governo e autor do livro recém-lançado ‘Against All Enemies’ (contra todos os inimigos).

No programa ‘60 Minutos’ de domingo, Clarke disse o que até então era indizível: que Bush, o autoproclamado ‘presidente da guerra’, fez ‘um trabalho deplorável na guerra ao terrorismo’. Após algumas horas de silêncio chocado, o trabalho de assassinato de caráter começou. Clarke ‘pode ter tido ressentimentos guardados, já que provavelmente queria um cargo mais alto’, declarou Dick Cheney, que também afirma que Clarke não estava bem informado. (Como assim? Antes do 11 de Setembro, ele era o mais alto funcionário a trabalhar com o contraterrorismo.) De acordo com Scott McClellan, porta-voz da Casa Branca, as críticas de Clarke dizem respeito ‘mais à política e à promoção de seu livro do que a políticas específicas’.

É claro que os funcionários do governo Bush precisam denegrir o caráter de Clarke. Há evidências independentes de sobra que confirmam a essência das acusações.

O governo deu pouca atenção ao contraterrorismo mesmo após o 11 de Setembro? Após os atentados, o FBI pediu US$ 1,5 bilhão para operações de contraterrorismo, mas a Casa Branca cortou essa verba em dois terços.

E, quando terroristas lançarem um novo ataque em solo americano, verão seu trabalho facilitado pela estranha relutância do governo em proteger alvos potenciais. Em novembro de 2001, uma delegação bipartidária exortou o presidente a gastar cerca de US$ 10 bilhões em prioridades de segurança, tais como portos e usinas nucleares. Mas Bush simplesmente se recusou a fazê-lo.

Finalmente, será que alguns representantes de alto nível do governo de fato queriam reagir ao 11 de Setembro atacando o Iraque? É claro que sim. ‘Desde os primeiros momentos após o 11 de Setembro’, disse Kenneth Pollack ao programa ‘Frontline’, ‘havia um grupo de pessoas, dentro e fora do governo, que acreditavam que a guerra ao terrorismo devesse se voltar primeiramente contra o Iraque.’ Richard Clarke veio apenas acrescentar mais detalhes.

Mesmo assim, o governo gostaria que acreditássemos que Clarke foi levado a escrever seu livro por motivações baixas. Entretanto, em vista do domínio que os ‘falcões’ exerceram sobre as listas de livros mais vendidos, até o outono passado, é improvável que ele o tenha escrito por dinheiro. Levando-se em conta que, até muito recentemente, a maioria dos analistas políticos achava que a reeleição de Bush fosse garantida, é pouco provável que Clarke tenha escrito o livro na esperança de conseguir um cargo político. E, dado o pendor do governo Bush por punir seus críticos, ele deve ter sabido que, ao escrever o livro, estava assumindo um risco pessoal muito grande.

Por que, então, ele o escreveu? Que tal esta resposta: talvez ele simplesmente quisesse que o público soubesse a verdade. Tradução de Clara Allain’



Michael Moore

‘‘Deus tem de ser brasileiro’’, copyright Folha de S. Paulo, 28/03/04

‘Saudações, meus amigos brasileiros e orgulhosos membros da Coalizão dos Sem Vontade!

Qual é o problema com vocês? Por que é que vocês não demonstram boa vontade e não se juntam a nós nesta guerrinha contra o Iraque? Vocês não sabem que é preciso obedecer e fazer o que foi mandado quando a única superpotência sobre o mundo está ladrando? Nós latimos, vocês pulam – essa é a regra! O que é que houve? Mr. Bush não ofereceu uma caixinha boa o bastante pra animá-los a apresentar armas e bombardear o povo do Iraque? Vocês não sabiam que Saddam, o Malfeitor, tinha armas de destruição em massa? Tremendas armas! Isso mesmo! Assustadoras! Ele… ele… ele pode ficar invisível, e ele tem ocultos e malignos poderes do tipo, ahn, ele, ele, ele pode transformar você numa traça! E, e… ele pode voar, também! Ele pousou no topo do Empire State Building – eu vi- e parecia que ia acabar com a gente! No duro!

Para os milhões de nós que, aqui nos Estados Unidos, tratamos de fazer o melhor que podemos para impedir que se alastre pelo mundo a ameaça do regime Bush, seus esforços aí no Brasil para confrontar e resistir a Bush são altamente necessários. Mais que isso: são desesperadamente apreciados. Não nos servem para nada esses líderes cretinos (como Tony Blair) que seguem como carneirinhos as idéias cretinas do nosso próprio e cretino ‘presidente’. Afortunadamente vocês – o belo povo brasileiro -, junto a um punhado de outro países, não se intimidaram com a provocação da guerra. O ano que passou assistiu à ocorrência, ao redor do mundo, de algumas das maiores demonstrações contra a guerra em toda a história. Tudo que eu posso dizer a vocês é obrigado, obrigado, obrigado.

Recentemente, em viagens ao exterior, as pessoas me agradecem e me saúdam como ‘o único americano são’. É um cumprimento, mas não é verdade. Eu posso garantir a vocês que nem toda a América enlouqueceu. Por favor, jamais esqueçam esta simples e única verdade: a maioria dos americanos não votou em George W. Bush. Ele não está na Casa Branca pela vontade do povo americano. A maioria dos americanos, contrariamente à crença popular, é de fato bastante progressista e liberal – só que faltam líderes realmente comprometidos com o caráter liberal para servi-los. Quando isso for consertado (eu espero que logo), as coisas vão melhorar.

Eu venho aqui para lhes dizer que não estou sozinho, e que na verdade estou prensado no meio dessa nova maioria americana. Dezenas de milhões de cidadãos pensam como eu penso e vice-versa. Acontece que vocês não ouvem falar neles – muito menos pela imprensa. Mas eles estão aí – e sua ira apenas começa a emergir à superfície. O que eu faço é apenas continuar ajudando na tarefa de perfurar essa camada, de forma que a raiva emergente desses milhões possa jorrar poderosa, como um gêiser de ação democrática.

É compreensível que o Brasil e o resto do mundo pirem com o comportamento dos Estados Unidos da América. Vocês têm razão para tal. A turma no poder aqui é pra lá de Deus me livre. Tudo que vocês têm a fazer é perguntar a si mesmos: ‘Se esses gangsters são capazes de roubar uma eleição, do que mais eles não seriam capazes de fazer?’. Eu só digo o seguinte: nada vai detê-los na destruição do que estiver no seu caminho, especialmente se eles estiverem no caminho de fazer mais uma graninha. E eles vão castigar vocês, sejam aliados ou não, se vocês não se ajoelharem e baixarem a cabeça à passagem deles, em marcha para a próxima troca da guarda do poder (preferivelmente, o poder de uma nação que possua uns bons e lucrativos lençóis de petróleo, obrigado). Tudo isso vai acabar por levá-los – e a nós – à ruína, é claro. Eu acho que a maioria dos americanos, por uma estreita margem, se dá conta, em algum ponto de suas entranhas, dessa situação dramática. Eles estão apenas miseravelmente perdidos, em parte por uma forçosa ignorância que começa na escola, onde eles aprendem algo próximo a nada sobre o restante do mundo, e que continua ao longo de todas as suas vidas adultas, servidas por uma mídia que eliminou qualquer traço de notícias estrangeiras que não tenham algo a ver com os Estados Unidos.

Que nada saibamos respeito de vocês deve ser a coisa mais assustadora do mundo a nosso respeito.

A maioria de nós não consegue localizar vocês no mapa – e, pior, também não conseguimos localizar nosso inimigo. De acordo com uma pesquisa recente, 85% dos americanos adultos com idades entre 18 e 25 anos não conseguem achar o Iraque em um mapa. Eu acho que o primeiro parágrafo do código de leis internacionais deveria ser o seguinte: se um povo não consegue encontrar o seu inimigo sobre o globo terrestre, ele não tem permissão para bombardeá-lo.

É possível que um povo tão ignorante esteja no controle do mundo? Antes de mais nada, como foi possível que chegássemos lá? Oitenta e dois por cento de nós não temos nem sequer um passaporte! Só um punhado de nós pode falar em outra língua que não o inglês (e nós mal falamos essa…). George W. só agora anda vendo o resto do mundo, e porque ele tem de ver, poirque, uai, é u qui us presidente faiz.

Eu acho que nós só estamos no comando do mundo porque temos armas maiores. É engraçado como isso sempre parece funcionar. Nós ‘ganhamos’ a Guerra Fria por desistência – a União Soviética, graças ao sr. Gorbatchev, decidiu simplesmente saltar fora depois que eles se viram estrangulados em um sistema que não funcionava, só isso. O regime que controlava a Alemanha Oriental caiu porque as pessoas saíram às ruas e começaram a bater num Muro com marretas. Cara, saca essa – troca de regime sem que um único tiro seja disparado!

Alguma coisa aconteceu na África do Sul também – ninguém precisou bombardeá-la para que seu povo fosse libertado! Aliás, contam-se por aí umas duas dúzias de países liberados, nessa década e pouco que passou, graças a uma combinação de pressão mundial e, acima de tudo, da própria deliberação dos povos, que se ergueram de forma não-violenta para tomar as rédeas do poder.

Mas como nós não temos notícias de nada que ocorra para além do Brooklyn ou de Malibu, eu acho que nós não ficamos sabendo como se fazem legítimas mudanças de regime. Daí que, no caso do Iraque, não foi preciso muito para puxar a manta sobre os olhos dos americanos (conectar o 11 de setembro de 2001 a Saddam Hussein é o meu preferido entre os artifícios usados) e fazê-los cair nessa.

Ok, é compreensível. Nós não aprendemos mesmo e, como eu estou certo de que vocês sabem, somos uns crentes irrecuperáveis. Somos muito sociáveis e generosos e simples na nossa maneira de ser. Se vocês nos disserem que precisam da nossa ajuda, nós saímos correndo em seu socorro. Se vocês nos disserem que jumento voa, nós vamos acreditar (desde que tenha aparecido na TV). É assim que nós somos e, eu tenho certeza, vocês acham charmoso esse nosso jeito. Me digam se não, admitam, vá, é disso que vocês gostam em nós! Sem mencionar nosso espírito pra cima, empreendedor! Antes do meio-dia nós apresentaremos ao mundo a próxima grande invenção! Determinação! Ambição! Firmes na postura do ‘sim, eu posso’! Tá certo, nós não tivemos um único dia de folga nos últimos seis anos – mas e daí? Quem é que precisa dormir? Nós temos um mundo pra governar!

Essas são, suponho, as razões pelas quais nós temos nos comportado desse jeito. Agora pergunto eu: que desculpa que vocês têm? Vocês têm uma rica, única, maravilhosa cultura. O Brasil é um lugar tão fantástico que fez com que a família real portuguesa abandonasse o próprio país e fosse praí montar a lojinha! Tudo que eu tenho visto do Brasil – o povo, as praias, a música, as praias, a dança e… eu já falei das praias? – me fez ficar convencido: Deus tem de ser brasileiro. Mas apesar de todas essas vantagens, o Brasil tem uma porção de senões, e é mais que tempo que os afortunados façam alguma coisa a respeito. O Brasil tem de se erguer acima dos seus problemas, do racismo arraigado, do qual muitos não querem nem falar, aos déficits nacionais, sob os quais muitos gostariam de ver seu país esmagado. Fazer frente à América na questão da guerra (e ainda gozar com a cara das políticas de imigração do Bush) foi uma atitude fantástica. Eleger um líder popular que saiu das classes trabalhadoras foi um tremendo passo à frente. Resistir à Alca também é bom. Sigam no caminho, lutem o bom combate. Você têm a economia mais poderosa entre as das Américas do Sul e Central – vocês estão na posição de dar o exemplo, de mostrar a outros o caminho certo. Tenham sempre isso em mente. E, pelo amor de Deus, parem de gastar dinheiro com o Exército. O Paraguai já está ferrado o bastante sem a ‘ajuda militar’ que vocês possam dar.

Agora as boas notícias: enquanto eu escrevo este prólogo, uma nova pesquisa de opinião registra que, pela primeira vez, a maioria dos americanos não acredita que Bush venha a ter um segundo mandato. Essa é uma tremenda notícia, considerando-se o apoio que ele teve a princípio para sua guerrinha, a mesma que acabou por se tornar uma guerra sem fim. Viu só? Há vantagens no fato de que os americanos tenham uma capacidade tão limitada de concentração e na nossa necessidade de sermos gratificados de forma instantânea. O Iraque não foi como Granada, e já encheu o saco! Nós queremos programas de TV com final feliz! Ei, por que esses caras continuam atirando na gente? Eu quero ir embora! Uáááááááááááááááááááááááá’!!!

Só mais uma coisa… Do ano passado para cá, desde que meu livro ‘Stupid White Men – Uma Nação de Idiotas’ e meu documentário ‘Tiros em Columbine’ foram lançados, eu tenho ficado impressionado com a resposta ao meu trabalho em todo o mundo. Dois anos atrás, foi uma honra mandar o Columbine ao Festival de Cinema do Rio, e eu estou igualmente honrado que este, meu mais recente livro, tenha sido agora traduzido para o português. Nestes vinte e quatro meses que então se passaram, tenho tido um retorno cada vez maior de mais e mais brasileiros. Espero que todos vocês continuem trocando idéias comigo – sobre o meu país, sobre o seu país – e que, unidos às pessoas que estão conosco em todo o mundo, nós possamos nos proteger uns aos outros das más decisões dessas figuras que freqüentemente se proclamam nossos líderes. Mais de cinco milhões de cópias de ‘Stupid White Men’ foram impressas em todo o mundo (parece que só Harry Potter vendeu mais), e a bilheteria de ‘Tiros em Columbine’ estabeleceu o recorde de todos os tempos para um filme documentário. Estou muitíssimo agradecido, porque significa que posso seguir publicando as palavras que eu quero publicar e fazendo os filmes que eu quero fazer, sem interferências. É uma dádiva, que não tomo como um acaso. Eu a tomo como um sinal de que o público deslocou-se da direita e que o tempo está maduro para um movimento em direção àquelas coisas boas que nós gostaríamos que acontecessem. É encorajador saber que, no ano passado, numa época em que Bush era supostamente tão popular (como a mídia insistiu erradamente em registrar), o livro que os americanos mais compraram e leram, mais que qualquer outro, levava por título ‘Stupid White Men – Uma Nação de Idiotas’, e era estrelado por ninguém menos que George W. Bush. Vocês viram? Nem tudo está perdido!

Tenham fé! Confiem! Tenham esperança! Mantenham o Carnaval pelado!’



Cassiano Elek Machado

‘George W. Bush ainda é o ‘João Bobo’ do escritor’, copyright Folha de S. Paulo, 28/03/04

‘O alvo continua sendo George W. Bush, mas desta vez o espevitado Michael Moore bate mais pesado.

‘Cara, Cadê o Meu País?’ (R$ 34, 276 págs.), que a editora Francis coloca nas livrarias amanhã, responsabiliza o presidente e seus ‘colegas’, os ‘bandidos corporativos’, não apenas pelo 11 de Setembro, mas pela derrocada da economia americana.

O estilo do autor é o mesmo exibido em ‘Stupid White Men’, que no Brasil já ultrapassa os 80 mil exemplares vendidos em um ano, segundo a editora Francis.

Em ‘Cara…’, Moore mescla seu humor de ironia ácida com de informações de repórter faro-fino. É dessa forma que relata o colapso da Enron e faz ‘campanha’ contra a reeleição de Bush.’




Michael Oreskes


"Onde está a culpa? Não aqui", copyright O Estado de S. Paulo / The New York Times, 30/03/04


"Assumir responsabilidade é uma parte essencial da vida cotidiana, algo pelo que todo pai e filho, todo patrão e empregado, todo amigo e colega se esforçam, ou sabem que deveriam se esforçar. No entanto, para um presidente americano, isso é bastante raro – e, pelo menos na visão de alguns historiadores e especialistas em governo, está ficando ainda mais raro, na medida que uma cultura nacional de transferência de culpa permeia a política dos EUA.


Eis que na semana passada algumas palavras duras foram ditas aos companheiros e famílias dos que morreram há dois anos e meio no terror de 11 de setembro.


‘Seu governo os decepcionou. Aqueles encarregados de sua proteção os decepcionaram. E eu os decepcionei.’ As palavras de desculpa foram claras, mas o rosto foi difícil de identificar. Ele não pertencia a nenhum líder reconhecível do governo – não era do presidente George W. Bush, do secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, do secretário de Estado, Colin Powell, ou da conselheira de Segurança Nacional, Condoleezza Rice.


Lá estava um homem de meia-idade, cabelos brancos rareando e uma bandeirinha americana espetada na lapela esquerda: um ex-funcionário de médio escalão da política externa de três períodos presidenciais chamado Richard A. Clarke.


‘Nós nos esforçamos muito’, disse Clarke às famílias ao testemunhar perante uma comissão que analisa o 11 de Setembro. ‘Mas isso não importa, pois fracassamos. E por esse fracasso, uma vez que os fatos ficaram claros, sua compreensão e seu perdão.’ O mea-culpa pareceu profundamente significativo para as famílias enlutadas, que se amontoaram em volta de Clarke quando ele terminou o testemunho. Mas o presidente Bush não ofereceu uma declaração similar, e nem o ex-presidente Bill Clinton, para quem Clarke também trabalhou.


Uma coisa é um vice do Conselho de Segurança Nacional assumir a culpa em nome não de um, mas de vários governos, num ato situado entre o admirável e o presunçoso.


É outra história um presidente dos Estados Unidos pedir desculpas.


Em outubro de 1983, terroristas no Líbano lançaram um caminhão carregado de explosivos contra um prédio que abrigava fuzileiros navais americanos, matando 241. Em dezembro daquele ano, uma comissão do Departamento de Defesa preparou-se para divulgar um relatório censurando oficiais na cadeia de comando por não terem garantido a segurança de seus soldados.


Uma cópia foi enviada para o presidente Ronald Reagan antes da divulgação.


Segundo relembra o então assessor David R. Gergen, Reagan leu o relatório e, sem muita discussão, dirigiu-se à sala de imprensa. ‘Se há culpa’, disse Reagan, ‘ela está justamente neste escritório e com este presidente. E assumo a responsabilidade pelo ruim tanto quanto pelo bom.’ Os comandantes, disse Reagan, não deveriam ser punidos ‘por não compreender totalmente a natureza da ameaça terrorista de hoje’.


Houve algumas críticas na época segundo as quais Reagan havia evitado o processo disciplinar militar. Mas no geral, afirmou Gergen, a aceitação da responsabilidade por algo ocorrido durante seu governo melhorou amplamente o status de Reagan entre os militares e o fortaleceu pelo resto de seu mandato.


‘Sempre que vi um presidente ou sua equipe assumir responsabilidade, a iniciativa teve um efeito benéfico’, disse Gergen. ‘O motivo pelo qual isso se tornou tão raro é o modo como se joga o jogo da culpa. Este pode ser tão feroz que, sempre que alguém admite o mínimo erro, esse erro será explorado pelo outro lado.’ É claro que a aceitação da responsabilidade, e mais ainda da culpa, pelos eventos do 11 de Setembro tem uma escala diferente de praticamente todos os outros fatos com os quais um presidente moderno americano teve de lidar. Certamente seria possível argumentar que o 11 de Setembro tem mais a ver com Pearl Harbour do que com Beirute, e que o presidente Franklin D. Roosevelt nunca assumiu responsabilidade por aquele ataque sorrateiro. Na verdade, ele convenceu os republicanos a não transformar isso num tema da campanha de 1944, afirmando que o esforço de guerra poderia ser prejudicado.


Horas depois de as torres do World Trade Center desabarem, partidários de Bush e Clinton começaram a culpar uns aos outros pelo fracasso na contenção da Al-Qaeda, e eles vêm fazendo isso desde então, em qualquer canal que encontram.


Na verdade, são surpreendentemente claros os registros de que houve uma série de momentos anteriores ao 11 de Setembro, ao longo de pelo menos oito anos, em que ações mais agressivas poderiam ter produzido um desfecho diferente naquela manhã límpida e triste. Por exemplo:


Em 1997, uma comissão liderada pelo então vice-presidente Al Gore recomendou medidas para reforçar a segurança aérea, incluindo revistas mais rigorosas dos passageiros e fechaduras mais fortes nas cabines de comando.


Os libertários civis e as companhias aéreas resistiram.


Osama bin Laden, embora não fosse um nome familiar, era bem conhecido como uma ameaça (de fato, o jornal The New York Times publicou uma série de primeira página sobre ele justamente no início do governo Bush).


O World Trade Center já estava claramente marcado como alvo desde o ataque a bomba de 1993, e a idéia de usar aviões como mísseis fora conhecida num complô frustrado para derrubar a Torre Eiffel.


Assim, quem é responsável por não juntar tudo isso, por deixar de evitar a tragédia? As companhias aéreas? A CIA? Richard Clarke? Bush? Clinton?


Pode-se dizer que o mais famoso souvenir presidencial da história americana é uma placa de vidro de 6 cm por 30 cm feita no Reformatório Federal de El Reno, Oklahoma.


Num dos lados, voltado para o presidente, ela dizia: ‘Sou do Missouri.’ Na outra face, voltada para os visitantes no Salão Oval, dizia: ‘The buck stops here’, uma expressão cuja tradução livre e aproximada é ‘a responsabilidade é minha’. Para o presidente Harry Truman, aquilo significava assumir a responsabilidade pela tomada de decisões difíceis, incluindo a demissão do general Douglas MacArthur. Mas não significava necessariamente manifestar arrependimento por elas mais tarde. Ele tinha orgulho de dizer que nunca perdera o sono por causa da decisão de lançar a bomba atômica – e, dez anos depois, quando foi convidado a visitar o Japão, afirmou que só iria se não tivesse de beijar a porção posterior da anatomia de nenhum cidadão japonês (ele não foi).


Bush deixou claro na semana passada que estava mais afinado com o estilo de Roosevelt do que com o de Reagan como comandante-chefe responsável, oferecendo uma limitada prova de responsabilidade presidencial no contexto do 11 de Setembro, ‘Se eu soubesse’, disse Bush, um dia depois do testemunho de Clarke, ‘que o inimigo iria usar aviões para atingir os EUA, para nos atacar, eu teria usado todo recurso, toda propriedade, todo poder deste governo para proteger o povo americano.’ É difícil imaginar que alguém – mesmo os críticos mais ferozes de Bush – duvide disso. Mas a declaração de Bush ilustra a transição de uma cultura política onde assumir responsabilidade demonstrava força para outra na qual isso expõe fraqueza.


Compare-se isso às ações de outro jovem presidente diante de uma crise no início do mandato. Em meados de abril de 1961, uma invasão de Cuba organizada pela CIA entrara em colapso num lugar chamado Baía dos Porcos.


‘Há um velho ditado’, disse o presidente John F. Kennedy, ‘segundo o qual a vitória tem uma centena de pais e a derrota é órfã.’ O presidente acrescentou: ‘Sou o funcionário responsável do governo.’ Apesar do desastre, a popularidade de Kennedy aumentou.


Mas ser um estadista nem sempre é o que parece, disse Michael Beschloss, um historiador presidencial. Mesmo enquanto Kennedy assumia responsabilidade, seus assessores estavam em ação silenciosamente – nos bastidores , como dizem em Washington – culpando pelo fiasco o presidente Dwight D.


Eisenhower, que havia dado impulso à invasão. No fim das contas, um funcionário do governo Kennedy, Stuart L. Udall, culpou Eisenhower em público, o que provocou uma resposta feroz de seu vice, Richard Nixon, e obrigou a Casa Branca a recuar. O porta-voz de Kennedy, Pierre E. Salinger, afirmou que o presidente era o único responsável e queria que todo mundo soubesse disso.


Naquela época, um líder assumia a responsabilidade em público e seus assessores só culpavam os outros privadamente.. Hoje, esses assessores apontam o dedo pela TV e apenas ex-funcionários de escalão médio assumem responsabilidade. Na cultura política de hoje, os presidentes podem estar com medo de admitir que não são capazes de fazer tudo com perfeição."




CASO DANIEL PEARL

Márcio Senne de Moraes


"Viúva de Pearl critica políticos e mídia", copyright Folha de S. Paulo, 30/03/04


"Mariane Pearl, 36, autora de ‘Coração Valoroso’ (ed. Objetiva), que já é um best-seller nos EUA, um livro sobre ‘a vida e a morte’ de seu marido, Daniel Pearl, jornalista do ‘Wall Street Journal’ morto aos 38 anos, no Paquistão, após ser seqüestrado por um grupo de extremistas islâmicos, prefere não falar muito sobre seu drama pessoal. Em vez disso, utiliza sua posição para examinar os problemas que afetam a sociedade americana.


Para ela, que é uma premiada diretora de documentários, o problema da guerra ao terror não são as políticas de George W. Bush, que não são surpreendentes, mas a falta de um debate aprofundado sobre a situação e sobre suas conseqüências. Cabe à sociedade civil estimular a conscientização política, diz, visto que a imprensa se encontra atada a seus interesses, não conseguindo apresentar ao público uma discussão imparcial sobre temas delicados.


Em 23 de janeiro de 2002, Daniel Pearl desapareceu em Karachi, no Paquistão. Seu corpo foi encontrado em maio do mesmo ano. Uma fita de vídeo com imagens dos extremistas obrigando-o a admitir que era judeu e, depois, cortando sua garganta é a maior prova de que ele foi assassinado.


O Paquistão já prendeu inúmeros suspeitos de envolvimento com o assassinato de Pearl. Ahmed Omar Sayeed Sheikh foi condenado à morte, em 2003, pelo seqüestro e pela morte de Pearl, e três de seus cúmplices pegaram prisão perpétua. Suspeita-se que Khalid Sheikh Mohammed, um dos mais importantes membros da Al Qaeda já detidos pelos americanos, também tivesse ligação com a morte do jornalista.


Folha – O que o livro sobre seu marido significa para a sra. hoje?


Mariane Pearl – Decidi escrevê-lo por várias razões, algumas mais pessoais que outras. Era muito importante para mim testemunhar o que ele tinha vivido, mergulhando no tema e conversando com pessoas que realmente tinham uma idéia do que tinha ocorrido. Quero deixar claro que sou uma pessoa comum, não quero vender nada nem pretendo dar uma visão exata do que ocorreu.


Também era importante para mim falar sobre as pessoas que me ajudam em minha luta, pessoas que realmente sabem o que é a guerra ao terror. Trata-se de pessoas que estão na linha de frente e que têm muito a dizer sobre essa situação. Na verdade, queria mostrar o lado humano de uma história trágica.


Folha – Porém ainda há muitas incertezas sobre o que ocorreu?


Pearl – A situação política geral ainda é muito complexa no Paquistão. Os paquistaneses estão tentando apresentar níveis internacionais de direitos legais, mas trata-se de algo bastante complicado porque há muitas forças que estiveram envolvidas no assassinato de Daniel que são contrárias a isso. E elas ainda são muito importantes na sociedade paquistanesa. O presidente [Pervez Musharraf] está numa situação difícil e também corre grande perigo.


Folha – A sra. discorda do modo como a guerra ao terrorismo está sendo conduzida, não é?


Pearl – Não critico somente o presidente Bush. Creio que o país inteiro tenha um grave problema: a falta de um debate mais aprofundado sobre questões muito sérias, como a guerra. Fazer uma guerra é uma decisão grave, que traz muitas conseqüências, e não acredito que a imprensa tenha lidado corretamente com isso. Trata-se de um problema da sociedade civil americana.


A posição de Bush já era esperada. Penso que o problema não é esse, mas a ausência de um debate sério sobre tudo o que ocorre no mundo atualmente. Antes da guerra, por exemplo, ninguém mostrou claramente aos americanos que a Al Qaeda poderia tirar vantagem de um conflito no Iraque, fazendo uma campanha internacional de propaganda.


Ademais, a falta de vontade de aceitar as críticas da comunidade internacional e a ausência de um acordo com nossos maiores aliados também não foram alvo de uma discussão séria. Para mim, como isso não ocorreu, a guerra já não deveria ter sido travada.


John Kerry [virtual candidato democrata à Presidência dos EUA] talvez mude um pouco a situação, pois terá os erros de seu predecessor em mente. Em essência, todavia, ele também não alterará o quadro geral. Nenhum político é Deus. É fácil criticar os políticos, mas o que fazemos na prática? Conscientizar a sociedade de seus problemas é crucial. É por isso que resolvi escrever o livro.


Não faz sentido ficar esperando que a classe política, que está no centro do conflito de interesses que também envolve a imprensa, faça as mudanças que consideramos necessárias em nossa sociedade. Acredito que devamos fazer a nossa parte para buscar alterar esse quadro geral. Assim, penso que é muito mais importante fomentar discussões políticas e trabalhar pela conscientização da população do que ficar reclamando de tudo o que consideramos errado na sociedade.


Folha – O assassinato de seu marido foi um ataque à imprensa?


Pearl – Sem dúvida. A mídia em geral estava num estado de choque à época e talvez não tenha percebido a importância do ocorrido. Vários outros jornalistas já foram mortos naquela região, e a imprensa teve de perceber que seu modo de trabalhar tinha mudado, porém não se aprofundou no que estava por trás da morte de Daniel. Um dos maiores problemas da mídia é confrontar suas próprias idéias, visto que há um corporativismo muito grande.


Minha relação com o ‘Wall Street Journal’ ilustra essa situação. Seus representantes não querem participar do processo nem aceitam envolver-se na investigação do que ocorreu. Nem tudo foi esclarecido. Mesmo assim, o jornal não quer envolver-se porque há problemas políticos ligados a tudo isso. E as grandes corporações de mídia não são suficientemente independentes nem corajosas para enfrentar tudo isso.


Afinal, elas têm interesses que ultrapassam os das pessoas -muitas vezes, até os daqueles que as representam. Não podemos esquecer que a imprensa e a classe política fazem parte do mesmo jogo."