Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Paulo Machado

‘A Ouvidoria recebeu uma mensagem do leitor Sérgio Joaquim Júnior onde ele levanta uma questão: trata-se da maneira parcial como a mídia trata as tragédias que nos chegam aos olhos e daquelas que são subliminares. Ele diz: ‘O que aconteceu no aeroporto em São Paulo é óbvio e não deixa dúvidas. Mas há algo mais pavoroso que passa despercebido no que tange à mortandade provocada pelo assalto aos cofres públicos cometido por nossos políticos em todas as instâncias; dinheiro que deveria ser direcionado às áreas de saúde, como também à segurança e, até, à educação, promovendo bem-estar a toda a nação’.

Não cabe a essa Ouvidoria tratar da dificuldade de a mídia, de maneira geral, ‘abordar essas tragédias que não nos chegam aos olhos e que, portanto, não apresentam cenas de mortandade explícita’, como sugere o leitor.

Para fugir do óbvio é necessário um trabalho profundo de investigação, apuração e pesquisa. É necessário cruzar informações, checá-las à luz de fatos não tão óbvios quanto reportar um acidente com um jato de 80 toneladas se chocando a 175 quilômetros por hora contra um prédio, explodindo e fazendo 200 vítimas. É preciso acompanhar os processos históricos em curso e a execução de políticas públicas com base em critérios que meçam eficácia, eficiência e transparência, e contrapor tudo isso com as receitas, as despesas e os investimentos ao longo de anos, conforme a responsabilidade de cada ator envolvido na execução, regulação e fiscalização das políticas públicas.

Mas não é, ou não deveria ser, justamente esse o trabalho do jornalismo para que cumprisse sua função social de debater as grandes questões nacionais? No entanto, como sugere Sérgio Joaquim, a atração pelo mórbido explícito parece ser o caminho mais comum, mais fácil, para obter uma notícia, para impactar magicamente a vida do cidadão, sem maiores explicações sobre o contexto em que esses fatos se apresentam na realidade. Explicar por que tais fatos aconteceram e que fatores os determinaram é muito mais complicado.

A Agência Brasil em sua cobertura sobre corrupção e desvio de dinheiro público tem conseguido publicar uma média de cinco matérias por dia. Foram 298 notícias nos últimos 60 dias. Mas em que medida essas matérias têm contribuído para melhorar a percepção do cidadão com relação à corrupção? Em que medida conseguem explicar suas causas e suas formas e por que elas ocorrem? Em que medida informam sobre a ‘mortandade provocada pelo assalto aos cofres públicos cometido por nossos políticos em todas as instâncias’, como diz o leitor? Uma coisa é a corrupção, o fato em si – fulano desviou tantos milhões de tais obras. Outra coisa é desvendar os mecanismos que permitiram ao fulano desviar sem que ninguém percebesse ou, se percebesse, fizesse vista grossa, acobertasse o desvio.

Na cobertura do recente escândalo da construtora Gautama, investigada pela operação Navalha, a Agência conseguiu desvendar satisfatoriamente como funcionaram os esquemas de desvio de recursos orçamentários, fraudes em licitações, tráfico de influência e locupletação.

Dentre as centenas de notícias, uma, que atende em parte à demanda do leitor, me chamou a atenção por tratar de um acervo com estudos sobre as causas e os efeitos da corrupção. Foi publicada no dia 17 de abril deste ano. Sob o título ‘Biblioteca virtual reúne documentos e pesquisas sobre corrupção no Brasil e no mundo’, é fornecido o endereço eletrônico da Biblioteca Virtual contra Corrupção (BVC) , mantida pela Controladoria-Geral da União, em parceria com o Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime (UNODC). A biblioteca virtual tem o objetivo de divulgar pesquisas e informações sobre corrupção, bem como disponibilizar dados sobre auditoria, fiscalização e ouvidoria.

‘Até hoje nós não tínhamos no Brasil um banco de dados que concentrasse essa quantidade de informações sobre estudos desenvolvidos em nosso país sobre corrupção e assuntos ligados à corrupção’, afirmou a secretária de Prevenção de Corrupção e Informações Estratégicas da CGU, Virgínia Cestari, na matéria publicada em 17 de abril.

Segundo ela, a biblioteca foi lançada com um acervo de cerca de 500 documentos entre artigos, teses e estudos científicos relacionados à corrupção, incluindo textos de organismos internacionais. Esse acervo deverá ser atualizado diariamente. Todo o conteúdo é de domínio público ou obteve prévia autorização dos proprietários dos direitos autorais.

Em um dos estudos disponibilizados na biblioteca virtual sob o título ‘Corrupção: custos econômicos e propostas de combate’, elaborado pelo UNODC, o cidadão encontra uma análise detalhada das razões e das formas de corrupção e como elas influenciam o desenvolvimento do país, inclusive quanto à eficácia das políticas públicas relativas à educação e à saúde. Nele, os pesquisadores trabalham com os índices de percepção da corrupção, ou seja, o grau de consciência e o conhecimento que o povo de uma nação tem dos esquemas e dos meandros da corrupção. É aí que entra a mídia fazendo o papel de dotar o cidadão da informação necessária para que ele descubra, investigue, denuncie e fiscalize os mecanismos de corrupção, corruptores e corruptos.

O documento mapeia esses mecanismos, os classifica e fornece dicas importantes para que a percepção da corrupção se propague como uma vacina por toda a sociedade. Ele se constitui em um roteiro para os jornalistas montarem pautas consistentes e acompanharem o processo histórico da corrupção, explicando os fatos cotidianos por meio de suas causas estruturais, culturais e políticas.

Uma das conclusões apontadas está diretamente relacionada aos índices de percepção da corrupção e sua correlação com os índices de desenvolvimento comparado entre nações. O estudo demonstra claramente que, quanto mais consciência o cidadão tem a respeito dos fatores que levam à corrupção, menores são os danos causados por esses fatores à qualidade de vida do cidadão e à eficácia da ação do Estado. Ou seja, cidadãos mais conscientes diminuem o espaço de manobra para os corruptos praticarem seu esporte predileto: desviar recursos públicos.

Assim, tragédias subliminares poderão ser evitadas, em grande parte, se o jornalismo cumprir seu papel de investigar, apurar, pesquisar e informar sobre os caminhos da corrupção e suas causas, pois a transparência é o melhor antídoto contra elas.

Cumprindo seu papel, a Agência Brasil em particular, poderá ajudar a mensurar a mortandade decorrente dessas tragédias subliminares, mortandade que, para ser calculada, passa necessariamente pela identificação do montante de recursos desviados e de como eles poderiam ser aplicados salvando vidas, promovendo a segurança, gerando emprego e renda e educando nossas crianças.

Até a próxima semana.’