‘‘Toda pessoa sonha com uma moradia digna. Milhões de famílias brasileiras estão longe disso.Recursos existem. Deixar a situação como está custa muito mais para toda a sociedade. Vamos, portanto, tornar esse sonho realidade.’ Luiz Inácio Lula da Silva, conselheiro do Instituto Cidadania, na apresentação do Projeto Moradia http://www.pt-pr.org.br/documentos/pt_pag/PAG%202004/URBANISMO/Projeto%20Moradia.PDF, em maio de 2000.
A cobertura jornalística de um programa habitacional como o que o governo lançou na semana passada requer planejamento para que não se divulgue apenas o que as autoridades dirão, mas, sim, o que o público quer e precisa saber. A falta de aprofundamento da Agência Brasil em questões práticas e objetivas fez com que diversos leitores escrevessem para esta Ouvidoria tentando tirar dúvidas sobre a sua operacionalização. Como as informações solicitadas não constavam das matérias, sugerimos aos leitores que se dirigissem à Caixa Econômica Federal para esclarece-los.
As fontes governamentais (55%), juntamente com empresários e políticos (35%) dão o tom da cobertura da ABr, somando 90% das fontes ouvidas. Assim, o ponto de vista dos interesses do poder político e econômico constituem quase a totalidade do olhar hegemônico sobre o programa habitacional do governo. Será que o cidadão sente seus interesses contemplados nessa forma de abordar e repercutir o assunto? Onde mais o cidadão poderia esperar encontrar uma visão diferenciada? Não seria em sua agência pública de notícias?
No entanto, foi em portais de notícias como o UOL que o cidadão conseguiu respostas para muitas de suas dúvidas. Eles coletaram e selecionaram as 12 perguntas mais freqüentes dos internautas e levaram-nas para a Secretária de Nacional de Habitação do Ministério das Cidades responder. Assim, no ultimo domingo prestaram um serviço publico por atacado publicando em matéria especial multimídia, com direito inclusive à imagem e áudio, as perguntas e as respostas.
Na cobertura da ABr sobre o assunto foram publicadas 61 matérias entre os dias 6 de março e 1o. de abril. Nelas, foram ouvidas 88 fontes: 48 do governo, 14 do empresariado, 14 políticos, nove da sociedade civil organizada, dois especialistas e um cidadão.
O público-alvo de toda política pública é o cidadão, mas ele foi ouvido em apenas uma matéria na cobertura da Abr.
A pesquisa é outro procedimento fundamental para que a reportagem entenda do que está falando. È graças a ela que se apura o processo histórico em curso, suas origens, a realidade que permeia o problema e as possíveis soluções, ou tentativas de, ao longo do tempo. Ao se preparar para as entrevistas o repórter precisa saber quais são as possíveis perguntas que o cidadão faria à autoridade para que as notícias contenham as respostas que interessam ao leitor. Para cumprir sua função social de verificar se aquilo que foi concebido pelo governo está de acordo com as necessidades daqueles a quem a política se destina é necessário, antes de tudo, ouvi-los.
Nas matérias, a definição do público-alvo da política habitacional esta confusa. Em uma matéria a ministra Dilma Rousseff fala que o programa se destina a municípios com mais de 50 mil habitantes, e, em outra, o presidente Lula fala que se destina a moradores de cidades com mais de 100 mil habitantes. Esta falta de precisão nos números pode incluir ou excluir alguns milhões de brasileiros do acesso à política pública. Uma apuração mais detalhada nas fontes citadas poderia certamente resolver o impasse antes que ele chegasse ao leitor.
Ao analisar a questão do déficit habitacional as matérias citam a falta de 8 milhões de moradias mas não fazem menção às 6,7 milhões de moradias desocupadas, fechadas, que temos no país e que, em grande parte, estão a serviço da especulação imobiliária e da concentração de capital de seus proprietários. Será que o plano do governo prevê algum destino para esses imóveis? Seria possível reciclá-los ou reutilizá-los de maneira coletiva?
Informar sobre possíveis inconsistências no planejamento governamental pode ser outra função indispensável que o cidadão espera da mídia. Mas, para se chegar a elas novamente, é preciso que o jornalismo trabalhe com planejamento, pesquisa e apuração. Ouvir especialistas sobre o assunto pode ser uma maneira de se avaliar a eficácia e a eficiência do que se pretende implantar e verificar se um programa atingirá seus objetivos e cumprirá suas metas. Nas 61 matérias da Agência Brasil apenas dois especialistas foram ouvidos.
Se 90% do déficit habitacional devem-se à falta de moradia para pessoas com renda entre zero e três salários mínimos, por que essa faixa de renda será contemplada com apenas 40% das futuras casas e apartamentos? Por que pessoas que ganham entre três e seis salários mínimos, responsáveis por apenas 6% do déficit habitacional, serão contempladas com outros 40% das futuras moradias? Essas são algumas das perguntas que as matérias não respondem, e que talvez os especialistas pudessem explicar.
A matéria Movimento cobra aprovação de PEC da Moradia, publicada no dia do lançamento do plano (25), não explica que PEC (proposta de emenda à Constituição) é essa ou do que ela trata. Apenas dá a entender que está parada no Congresso Nacional. Na mesma matéria, o representante do Movimento Nacional de Luta pela Moradia, Miguel Lobato, fala que ‘é preciso recursos para reduzir também o déficit habitacional qualitativo’. A que se referiu a fonte? Será à qualidade das 10 milhões de moradias indignas que superlotam as favelas? A resposta a essa pergunta o leitor também não encontrará nas matérias da ABr, que não divulgou a carta política publicada pelo Fórum Nacional da Reforma Urbana (FNRU), sete dias antes do lançamento do plano do governo, intitulada A Reforma Urbana e o Pacote Habitacional, assinada por 25 entidades da sociedade civil dedicadas ao assunto. Ouvir o que essas entidades têm a dizer seria uma outra forma de contextualizar o fato (político) do lançamento do programa governamental dentro da realidade habitacional brasileira. Afinal, há anos elas se dedicam a estudar o problema e a reivindicar o direito à moradia digna. Uma das possíveis soluções apresentadas por esses movimentos é a construção em regime de mutirão por cooperativas habitacionais. A experiência funcionou em diversas cidades inclusive com o emprego de materiais que causam pouco ou nenhum impacto ambiental – são construções que respeitam o meio ambiente. Será que o plano do governo prevê parcerias com essas cooperativas ou só com empreiteiras e construtoras?
Será que o plano contempla alguma garantia de emprego para os trabalhadores do setor da construção civil e da industria de materiais de construção que vão ficar com a maior parte dos R$34 bilhões que serão investidos pelo governo? As matérias também não informam.
Para avaliar a real dimensão de uma política pública é fundamental que o cidadão conheça quais são seus direitos e deveres previstos na legislação sobre o assunto. Para informar sobre eles o papel da mídia é de vital importância. O Estatuto da Cidade, Lei Federal nº 10.257/01, por exemplo, regula o capítulo da Política Urbana da Constituição Federal, definindo as diretrizes para a política e o desenvolvimento urbano e regulamenta o direito às cidades sustentáveis e à sua gestão democrática. O estatuto também contém conceitos como o da função social da propriedade que é um dos princípios fundamentais da Constituição Brasileira (Art. 5º, XXIII; 170, III; e 182, Parágrafo 2º). Outro conceito fundamental é o do direito à moradia adequada: direito humano, respeitando o direito de viver com segurança, paz e dignidade contando com: a segurança jurídica da posse; a disponibilidade de serviços e infra-estrutura; custo acessível da moradia, que significa gastos com a moradia proporcionais com à renda, habitabilidade, acessibilidade, localização, adequação cultural. Mas, nas matérias da ABr, o leitor não encontra nenhuma referência a seus direitos.
As matérias não exploram aspectos práticos quanto à execução do programa que, segundo o governo, ficará a cargo da Caixa Econômica Federal. Agentes financeiros geralmente reduzem políticas publicas a meros negócios por meio de filtros cadastrais que excluem a todos aqueles que os gerentes consideram não lucrativos para as instituições financeiras – é aplicada a lógica privada de mercado por agentes públicos. Freqüentemente, nesses casos, vemos prevalecer o interesse mercantil sobre o interesse público e o direito da cidadania.
Em artigo publicado no jornal Le Monde Diplomatique de fevereiro os arquitetos e urbanistas Raquel Rolnik e Kazuo Nakano lembram: ‘Construir moradias é produzir cidades. É essencial discutir os impactos dos empreendimentos imobiliários nas condições de vida, na instituição ou destituição de direitos sociais, no ordenamento territorial e no funcionamento das cidades. No Brasil, as cidades são marcadas por profundas expressões de desigualdades e exclusões socioterritoriais, e o principal sentido dos processos de produção de moradias é engendrar cidades e urbanidades para garantir o bem-estar e o desenvolvimento das pessoas. Estamos diante de uma bela oportunidade. Não vamos cair nas armadilhas sedutoras dos números: 1 milhão de moradias? Sim, mas onde, como e para quem?’
Talvez seja possível a agência pública de comunicação fornecer subsídios para essa discussão desde planeje sua cobertura, pesquise mais profundamente sobre o assunto e faça uma apuração rigorosa dos fatos.
Até a próxima semana.’