‘Conflitos étnicos geraram as mais sangrentas e prolongadas guerras da história da humanidade. Com o passar do tempo eles provocam intolerâncias e rancores que se transformam em ódio e preconceito, os quais levam a ações que visam a eliminação física dos inimigos. Muitos desses conflitos foram criados e alimentados pela burocracia e pela diplomacia de Estados ao ignorarem as origens e as características culturais e espirituais dos povos, renegando ou subestimando o seu direito à autodeterminação. Como exemplo temos mais recentemente a questão Israel-Palestina, os bascos na Espanha e na França, o apartheid na Africa do Sul e muitos outros.
A chamada Grande Reportagem da Agência Brasil sobre a situação dos índios Guarani Kaiowá, intitulada Duas realidades sobre o mesmo chão, publicada em setembro, da qual tratamos em nossa coluna Apartados da natureza indígena, continua suscitando debate entre os leitores, por isso voltamos ao assunto para aprofundá-lo.
O leitor Albino Milczwski Filho escreveu: ‘ Parabéns pela matéria esclarecedora sobre as terras indígenas do dia 02/10/2009. Alem de esclarecido me fez ver esse problema de um outro ângulo: o do coração’.
Mas o autor da demanda inicial, Fabiano Reis, não ficou satisfeito e tornou a escrever para esta Ouvidoria: ‘ Obrigado pela resposta pois abre o debate entre os responsáveis e leitores da Agência Brasil e coloca em destaque as mais variadas interpretações sobre o tema. Entretanto, a população de Mato Grosso do Sul é composta por aqueles que habitam o estado, amam e defendem o povo desta parte do país e seus interesses sendo indígena, branco, negro ou amarelo. Para se entender isso basta lembrar ‘(O sul) de Mato Grosso espera esquecer quisera o som dos fuzis, se não fosse a guerra quem sabe hoje era outro país’, aqui já foi Paraguai. Além disso, em Mato Grosso do Sul (assim como o resto da Região Centro-Oeste) a ocupação foi incentivada pelo governo federal. Em MS as propriedades são documentadas pela União desde 1885, 1910 e as mais tardias 1920 e salvo algum fato lamentável da história, não houve ataques aos indígenas para saírem das terras.
Por outro lado, a visão pouco cientifica da questão e muito apaixonada, causa efeitos cruéis aos povos indígenas. A visão multinaturalista que aponta a terra como segmento do próprio homem é aplicado ao indígena sem restrição. E ela se refere ao homem tribal. Avalio que os problemas enfrentados por esta parte fundamental da população brasileira não difere dos outros excluídos do Brasil, necessitam de educação, saúde adequada, moradias decentes e perspectivas para planejar a própria vida. Ser um cidadão de fato. Até o momento as mesmas políticas públicas afirmam inserir o indígena (dando ou devolvendo terras, por exemplo) para depois excluir (jamais mostraram como trabalhar estas terras e ainda são considerados incapazes em sua totalidade, não são cidadãos completos) eu pergunto ao ouvidor que defendeu a reportagem com tanta convicção: manter seres humanos à margem do desenvolvimento, é certo? Dar manutenção em uma política pública que trata homens e mulheres como seres primitivos, é certo? Há algum assentamento (que os próprios índios não tenham arrendado aos brancos) que não seja um completo desastre?
É evidente que a luta por várias causas, inclusive a indígena, oferece manutenção a diversos empregos. Os casos da reserva Raposa Serra do Sol e do sul de MS são totalmente distintos. Não é intenção deste leitor da Agência Brasil pregar a não demarcação de terras que forem, de real direito de indígenas, muito menos manter os índios na miséria ou em estado primitivo. Entretanto, por aqui, nas terras do Mar de Xaraés, ninguém quer ver cidades fantasmas e falidas, terras arrendadas ilegalmente por indígenas e índios passando fome e todo tipo de necessidade – sem assistência correta da Funai, assim como todo resto da população do estado. Por outro lado, insisto ser importante abordar o assunto de forma técnica, sem paixões e crenças, ‘doa a quem doer’. Portanto, seria interessante entrevistar fontes para as questões jurídicas, que sejam estudiosos do assunto, fora da briga Funai e Famasul. Lembrando da sugestão do ouvidor sobre a questão do índio presente em MS ‘há milênios’ e por isso as terras são indígenas, lembro que a situação não é diferente no Rio de Janeiro, São Paulo ou qualquer outra localidade do país e a Funai não fala em estudos para demarcar essas unidades da Federação’.
Lembramos ao leitor que não compete ao Ouvidor responder às suas perguntas sobre o assunto com opiniões pessoais, mas indicar onde ele encontraria as possíveis respostas nas matérias da ABr. Em sua reportagem a Agência procurou fazer um retrato da situação atual do conflito, tarefa que consideramos bem sucedida em face da omissão da imprensa de um modo geral.
Explicar por que os fatos ocorrem já é um passo mais além da proposta inicial da cobertura que manteve a reportagem apenas quatro dias na região, tempo muito aquém do necessário para se aprofundar em questão tão complexa.
Em uma análise mais detalhada da reportagem esta Ouvidoria constatou que muitas das perguntas do leitor poderiam ter sido respondidas se outras abordagens tivessem sido empregadas e complementadas com a devida contextualização do processo histórico de ocupação daquela parte do território nacional, citada por Fabiano Reis.
No total de 14 matérias são citadas 20 fontes, algumas mais de uma vez, das quais cinco são grandes produtores rurais (25%) e 11 são índios (55%), somando 80%. Daí o clima de peleja entre dois lados contendores. Esse clima de antagonismo foi descrito em nossa coluna anterior como ‘uma partida de futebol em que dois times se defrontam’. O efeito disso é que fica um discurso contra o outro, um dualismo que reduz a questão sem explicar os demais interesses que estão em jogo. Por exemplo, na matéria do Marangatu (área homologada), o fazendeiro sustenta que a terra pretendida pelos índios pertence a ele. Para entender a disputa há que se recuperar o processo no qual, em 2005, o governo federal homologou a terra como área indígena. Como é que um processo homologado pelo presidente da República é suspenso por liminar do Supremo Tribunal Federal (ministro Nelson Jobim) volta para a Justiça de Primeira Instância? Essas questões vão além da contenda descrita nas matérias e não foram informadas aos leitores.
Três dos cinco grandes produtores rurais entrevistados ocupam cargos no governo municipal ou em órgãos de classe regionais ou estaduais, enquanto que dos 11 índios ouvidos pelo menos quatro são classificados como lideranças, mas apenas dentro da estrutura das aldeias ou dos acampamentos. Não foi ouvido nenhum representante de movimentos indígenas organizados que contextualizasse a questão de forma mais abrangente.
Do lado da população rural não indígena, excluídos os grandes produtores rurais, há apenas uma pequena agricultora como fonte da reportagem – ex-colona, assentada em uma terra que foi transformada em reserva. Por meio dos comentários de um promotor do Ministério Público no estado, a cobertura toca na questão dos títulos irregulares de propriedade outorgados pelas autoridades federais e estaduais, mas a reportagem não aproveitou a experiência da pequena agricultora para desenhar o contexto histórico do povoamento da área, na qual pequenos agricultores não indígenas foram inseridos na região como colonizadores. O que se destaca é o ressentimento da lavradora em consequência de ter sido transferida para uma área menos favorável à agricultura.
Além dessas duas fontes, há apenas duas que não são grandes produtores rurais ou índios: a administradora regional da Funai e o antropólogo que participa no trabalho de vistoria. A reportagem toca em aspectos importantes na entrevista com o procurador, que acusa o governo estadual de compactuar com as entidades ligadas aos fazendeiros para emperrar o processo de vistoria, mas não ouviu ninguém ligado ao Poder Executivo ou Judiciário estaduais para repercutir as acusações de possíveis resistências políticas à demarcação e homologação dos territórios e não aproveitou a entrevista com o antropólogo para dar mais informações sobre o que as vistorias envolvem e quais são os sinais que são usados para reforçar o direito dos indígenas às terras.
A questão das indenizações das terras e benfeitorias que serão desapropriadas é apenas citada, mas parece que aí reside um dos principais focos de tensão. Quem arcará com os recursos necessários? A União ou o estado? Há verba prevista para isso nos respectivos orçamentos?
Na reportagem com a administradora regional da Funai fica evidente a precariedade da estrutura e do funcionamento do órgão. Todavia poderiam ter sido ouvidas instâncias superiores para explicar por que a situação não é diferente. A atuação da instituição é citada na matéria com o procurador do Ministério Público Federal – MPF, que afirma: ‘O TAC [Termo de Ajustamento de Conduta celebrado pelo MPF com a Funai] não está sendo descumprido por força da Funai, há elementos políticos e jurídicos’. Quais são esses elementos? As matérias não explicam deixando sem respostas algumas das perguntas formuladas pelo leitor.
A matéria MPF: destinação de terras para os guarani kaiowá é caminho sem volta fala que a ‘União cometeu um equívoco histórico no estado ao obrigar os índios a deixar as terras tradicionais e viver em espaços reduzidos nas reservas’. Sabe-se que sucessivos governos – estadual e federal, há mais de um século distribuíram terras na região como instrumento de barganha política e como parte central da estratégia de colonização do Centro-Oeste, como se aquelas terras não fossem de ninguém. Os Guarani assistiram a tudo isso pacificamente pois sua força vital, baseada na identidade cultural e na ancestralidade, vinha sendo comprometida desde tempos mais remotos de confronto com a civilização branca. Essa aparente ‘passividade’ daquele povo precisaria ter sido explicada de maneira antropológica. Essas informações provavelmente serviriam para esclarecer sobre ‘os índios na miséria ou em estado primitivo’, citados pelo Fabiano.
Lideranças indígenas com destaque nacional e internacional estão neste momento pensando e discutindo ativamente politicas públicas e soluções para o desenvolvimento sustentável de suas diversas etnias, dentre elas os Guarani. Marcos Terena, diretor do Memorial do Povos Indígenas, órgão ligado à Secretaria de Cultura do Distrito Federal, representante da população nativa brasileira na Organização das Nações Unidas – ONU, desde 1991, é um deles.
Em recente entrevista(*), Marcos lembra que ‘Meu povo, até hoje ficou em silêncio em relação a todas as provocações. O silêncio tem um significado espiritual. É a força espiritual para saber o momento e qual o tipo de ação a tomar. Reflexão dos líderes homens e mulheres. Aparentemente estavam contentes com o paternalismo. O chamamento tem a ver com o meio ambiente e espiritualidade, não tem espiritualidade se não tiver meio ambiente.’
Tratando da questão jurídica sobre a demarcação das terras o líder indígena argumenta: ‘Na Declaração Internacional da ONU está claro. Muitas vezes os advogados, o sistema jurídico brasileiro a desconhece e a maioria das decisões em relação ao direito indígena é unilateral. O sistema é ignorante em relação aos povos indígenas. Precisamos mostrar para ele (governador do MS) que ele tem a ver com o compromisso indígena, ele tem que ser parte porque o instrumento do lucro imediato vai trazer catástrofe ambiental, desequilíbrio nas águas das chuvas dos rios. Isso vai refletir nas novas gerações. Precisamos despertar isso na nossa sociedade. A fama de Mato Grosso do Sul no exterior, digo porque conheço 30 países, é que o Estado produz o gado verde. Quem cuida desse gado no Pantanal? São os índios peões. Meu avô já foi um deles. A modernidade não permite mais a monocultura. Não precisa destruir o Cerrado para criar gado. Os índios ensinaram os fazendeiros a preservar. A carne é famosa lá porque não precisa de ração. A nova geração de produtores rurais vai para fora e começa a entender isso. A reação contra a demarcação vem do setor mais racista que não gosta dos índios, não sabem nem contar o gado e nunca pegaram no arado. O que trabalha com a terra vê o índio como aliado. Quem é contra é o fazendeiro unha pintada, que não tem calo na mão.’
Discutindo alternativas econômicas para o desenvolvimento, Terena considera: ‘O turismo é educativo, preventivo e gera renda. Lá no Canadá os índios têm empresa de transporte aéreo. O Sebrae tem que profissionalizar o índio. No Paraná, o governador Requião fez o ICMS Ecológico. Se aquele município tem mais área verde, vai receber mais recurso para cuidar dele. Requião é do mesmo partido do Puccinelli [governador do MS] e pode dizer para ele como funciona. O índio é parte do processo e o desafio é construir o processo em Mato Grosso do Sul que hoje é conhecido internacionalmente como o Estado do Brasil que mais viola os direitos indígenas. Tem que mudar a cabeça das autoridades.’
A matéria Área sob litígio aumenta tensão entre índios e fazendeiros na fronteira com o Paraguai mostra o quão explosiva é a situação. Há denúncias de uso de pistoleiros contra a comunidade, mas ela não foram repercutidas no Ministério Público Federal, na Funai, nem na polícia – nenhuma autoridade foi ouvida sobre isso.
Para se entender a complexidade da questão em Mato Grosso do Sul há que se observar também que o contexto político regional repercute em Brasília por meio dos deputados e senadores, representantes das oligarquias que têm o domínio econômico da região e que pressionam os Poderes e as instituições federais para que a atual situação perdure. Fora desse contexto fica difícil para a reportagem explicar a realidade local. A Grande Reportagem tem o mérito de ser uma fotografia dessa realidade mostrando a gravidade da situação em que se encontra uma parcela considerável dos 70 mil índios. Mas se os fatos extrapolam as circunstâncias reportadas há que se aprofundar na pesquisa, na apuração e na verificação das declarações das fontes. Além de especialistas, precisam ser ouvidas lideranças, políticos e autoridades referidas nas matérias. Muitas das perguntas do leitor só encontrarão resposta se a Agência Brasil se aprofundar na questão.
Tudo indica que o assunto continuará na agenda pública pois o presidente da Funai já declarou que a homologação da terras dos Guarani é ‘uma questão de honra’. À agência pública compete acompanhar a questão para manter vivo o debate, como vem fazendo. Séculos de injustiças e violência podem finalmente ter um paradeiro e ao jornalismo cabe escrever a parte atual dessa história.
Até a próxima semana.
(*) ver a entrevista completa em: http://www.midiamax.com/view.php?mat_id=560467′