‘Lula ou FHC? Nos últimos dias assistimos a um duelo de palavras reproduzido e repercutido pela mídia como se fossem dois indivíduos que se defrontam tentando convencer o público sobre os méritos de seus feitos pessoais enquanto presidentes.
Com relação a forma de tratamento e de abordagem das relações de poder entre governantes e os titulares da presidência da república, a matéria Lula atribui atuais índices de desenvolvimento a mudanças na política adotada por FHC, publicada dia 5 de fevereiro pela Agência Brasil, é um bom exemplo.
Sobre ela, escreveu o leitor André R. Nogueira: ’… a reportagem não apresenta no corpo da matéria evidência que autorize a manchete. Contrariamente, o conteúdo da reportagem informa algo diferente, quando não antagônico ao que a leitura apressada da manchete sugere.’ Na mesma mensagem o leitor também reclamou que o ’na pagina em que está a matéria referida acima há um link que informa ’fale com a ouvidoria’. Gostaria de entender a razão pela qual o link remete a pagina home do site ebc.com.br, e não para um mecanismo que permita diretamente que se ’fale com o ouvidor’
A ele a ABr respondeu ’Agradecemos o comentário do leitor e fizemos um ajuste no título.
Quanto ao problema do link, já foi remetido aos técnicos para solucioná-lo.’
A Agência Brasil mudou o título para Lula diz que política econômica de FHC não levaria ao atual nível de desenvolvimento do país, mas não se pronunciou quanto ao suposto ’antagonismo’ do conteúdo publicado. Quanto ao link, o problema foi resolvido e o acesso ao formulário da Ouvidoria restabelecido.
Destacar as pessoas e não as funções que elas ocupam, bem como estas ultimas separadamente da instituição, é uma prática comum do jornalismo que tem se tornado cada vez mais frequente, mas que trás em seu bojo uma perigosa personificação do poder que mascara a realidade e não contribui para a construção de instituições sólidas e confiáveis. Pelo contrário, as subjuga, passando para o cidadão a falsa impressão de que fulano é o verdadeiro ’salvador da pátria’ ou o culpado pelas mazelas da sociedade e não a lógica que rege o funcionamento das instituições.
No Estado de Direito, regido por uma constituição, o poder é atribuído às instituições e dentro delas, às funções e não às pessoas que eventualmente ocupam a sua direção. Em uma democracia, o governante nada mais é do que um cidadão igual a todos os outros, exercendo temporariamente um poder em nome da instituição. Mesmo sendo o representante de determinados setores da sociedade e de seus interesses, ele é antes de tudo um funcionário público, imbuído de responsabilidades que lhe foram delegadas pelo povo da nação – esse sim, o real detentor do poder. A impessoalidade e a imparcialidade no exercício da função pública são regras fundamentais da ética pública definida na lei que rege o serviço público.
Para exemplificar o que estamos falando, frequentemente assistimos a mídia dizendo que uma determinada posição é do ministro fulano de tal e não do ministério. Da mesma forma dizem que Lula ou FHC fez isso ou aquilo e não que o governo fez.
Nossa Constituição estabelece, por exemplo, que o poder executivo tem determinado poder que será exercido pelo Presidente da República e seus respectivos ministros e não por beltrano ou ciclano. Essa diferenciação visa pactuar regras permanentes de funcionamento do estado, dos poderes e dos órgãos que os integram, independentemente de quem seja a pessoa que ocupe os cargos.
Muito mais do que uma questão semântica, a forma da mídia abordar o protagonismo das ações governamentais geralmente reflete uma tentativa de personificação do poder que pode induzir o cidadão a acreditar que a vontade dos gestores está acima da função constitucional das instituições. No entanto, se concordarmos com isso, também teremos que admitir que uma só pessoa, isoladamente, poderá mudar o destino de uma nação.
O estado moderno é composto por um coletivo de instituições que devem coexistir, exercendo suas funções, acima e independentemente da vontade política dos gestores que eventualmente as administram. Apesar de muitas vezes parecer natural em nossa tênue democracia, que gestores arvorem para si realizações da instituição, isso nada mais é do que uma usurpação privada do direito público. Da mesma forma, o sistema econômico reúne um coletivo de estados nacionais que se pressupõe hierarquicamente mais importantes que seus eventuais governantes. Um dos riscos que se corre quando invertemos essa lógica, e essa hierarquia, é o de fabricarmos super heróis, candidatos naturais a déspotas de regimes autoritários, dos quais a história está cheia de exemplos.
Mas a história também mostra que a própria imprensa, e a consequente liberdade de expressão e de pensamento da qual ela depende, geralmente são as primeiras das muitas vítimas desses déspotas e dos regimes por eles instituídos. Paradoxalmente, a mesma imprensa detém o poder de desmistificar esses falsos heróis reduzindo-os à sua real dimensão de funcionários públicos a serviço de uma nação.
Uma das consequencias dessa forma de abordagem do exercício do poder reflete-se nas campanhas eleitorais que promovem candidatos e não suas propostas. Uma prova disso é a dificuldade que a mídia apresenta ao tentar identificar e debater os programas de governo, geralmente, superficiais e genéricos quanto às questões que realmente afligem à população, não se diferenciando em sua essência. Quase nunca entram em detalhes de como, quando e com que dinheiro fazer. Dificilmente se comprometem com metas e objetivos verificáveis ao longo do tempo – divagam em intenções imensuráveis que o eleitor nunca terá como cobrar.
Até que ponto vai a responsabilidade da mídia pela qualidade das campanhas eleitorais? Até que ponto a abordagem que a mídia faz do exercício do poder influencia a forma de fazer as campanhas? Essas são algumas das perguntas sobre as quais precisamos nos debruçar para sabermos exatamente que democracia estamos construindo.
Na matéria citada, por exemplo, não seria mais útil para o cidadão se fossem comparados os feitos concretos dos governos e não a opinião dos governantes sobre eles? Ou ainda discutir o que foi realizado à luz dos respectivos programas de governo, planos plurianuais, metas e objetivos atingidos ou abandonados ao longo da gestão?
Se a mídia em geral prefere tratar mandatários e ex-mandatários como personagens de reality shows não caberia à agência pública mostrar seu diferencial dando substância ao debate? A quem interessa saber se o governo do PT foi ou não uma continuidade do governo do PSDB e dos partidos que os apoiaram? O que prova isso além de demonstrar que, independentemente de quem está no poder, o sistema econômico e politico dá muito pouca margem para inovações?
O que o eleitor precisa saber é que a história não dá saltos. Governos não são mágicos que tiram da cartola modelos de desenvolvimento independentes do contexto histórico e do processo global de evolução do sistema produtivo. Muito menos podemos reduzir o debate sobre os desafios que o tempo histórico nos coloca enquanto nação às opiniões individuais de pessoas, sejam elas quem for. Apesar de boa parcela da mídia querer nos fazer acreditar que são algumas dessas pessoas que mudam o mundo, esse papel não deve estar reservado às instituições?
Até a próxima semana.’