‘A complementaridade dos sistemas de comunicação público, estatal e privado, prevista em nossa Constituição Federal, começou a realizar-se a partir da criação da EBC. Não foi à toa que a Lei (*) a definiu como sendo o primeiro principio da empresa pública para suprir a lacuna existente entre a comunicação praticada pelos veículos de empresas privadas e estatais.
Reclamações de dois leitores recebidas por esta Ouvidoria nos convidam a refletir sobre a necessidade de aprofundarmos a discussão sobre a forma do jornalismo público (**) produzir a informação.
Valter de Paula escreveu: ‘Mais uma vez atento para o fato de que quando ocorrem tragédias naturais no nordeste ( a menos que o presidente se desloque para o local) ou mesmo mais ao sul do país, encontro aqui apenas notas, mas quando ocorrem em solo fluminense a agência que se diz ‘Brasil’ desloca inclusive repórteres fotográficos.Tenho por mim que deveriam mudar o nome da empresa.’
A Agência Brasil respondeu: ‘Agradecemos a mensagem e as observações do leitor. Na realidade a Agência Brasil esteve com repórter e fotógrafo cobrindo as enchentes que ocorreram em Santa Catarina, Pernambuco e Alagoas. É nosso desejo, embora tenhamos limitações orçamentárias, estar em outras áreas do país com problemas da mesma natureza. Enviamos, de fato, um fotógrafo para complementar o trabalho dos repórteres da nossa sucursal do Rio de Janeiro sobre uma das maiores tragédias registradas no Brasil, nos últimos tempos.’
Os estados de Pernambuco e Alagoas foram atingidos por chuvas fortes no fim de semana de 17 e 18 de junho de 2010, provocando inundações em vários municípios. No período de 19/06 a 15/07 a ABr publicou mais de cem matérias sobre o assunto:
Total de matérias: 121
Local de geração:
Brasília: 96 (79%)
Nordeste: 19 (16%)
Outros (RJ, SP, Exterior): 6 (5%)
Se tomarmos um intervalo mais curto de tempo, de 25/06 à 03/07, segunda e terceira semanas após as enchentes, a reportagem da ABr de Brasília foi enviada para a região onde produziu 14 das 42 matérias publicadas, ou seja, 33% do total. Dessas 14 matérias, cinco foram feitas na primeira semana depois do desastre por uma repórter de Brasília que viajou para o Nordeste a convite do Ministério da Defesa.
No mesmo período houve nove reportagens fotográficas sobre o assunto, com um total de 142 fotos, das quais 134 foram feitas no Nordeste e oito em Brasília.
A título de comparação, norteada pela reclamação do leitor e pela resposta da ABr, examinamos os dados referentes à cobertura do desastre que ocorreu em janeiro de 2011 na região serrana do Estado do Rio de Janeiro. Embora as chuvas fortes tenham começado no Natal, provocando desabamentos que resultaram em mortes, a data que marcou o episódio foi 12/01. Durante os 27 dias seguintes – período igual ao que foi usado para pesquisar a cobertura das enchentes em Pernambuco e Alagoas – a ABr publicou 426 matérias sobre o assunto – 3,5 vezes mais do que no caso do Nordeste.
Na cobertura fotográfica do desastre na região serrana, a ABr publicou 14 reportagens fotográficas, com um total de 301 fotos, das quais 273 foram feitas na região serrana e 28 em Brasília. Estas cifras representam aproximadamente o dobro do numero de fotos.
Outro caso foi levantado pelo leitor Bruno Lana: ‘Por que tantas reportagens sobre o metrô de São Paulo, sempre criticando seu reduzido tamanho, e numa busca não encontrei NADA [grifo do leitor] sobre o metrô de Belo Horizonte, federal, com obras paralisadas desde 2003? A EBC está loteada e a serviço dos interesses do governo federal? Como uma situação muito mais absurda e caótica, que é o metrô de BH, não recebe atenção alguma da Agência?’
A Agência Brasil respondeu: ‘Agradecemos a mensagem do leitor. Estamos preparando pautas para as demais regiões do país onde há sistema de transporte de metrô, como Belo Horizonte, Salvador, Porto Alegre e etc.’
Em uma pesquisa, encontramos o assunto construção/ampliação/condições de operação dos metrôs como foco de em apenas cinco das 19 matérias onde é citado, sendo três referentes ao metrô de São Paulo, uma ao metrô do Rio de Janeiro e uma ao de Porto Alegre.
Nas demais notícias o assunto aparece entre outros, mas não constitui o foco da matéria como, por exemplo, o caso do metrô de Belo Horizonte citado em uma das respostas na entrevista com o governador de Minas Gerais Anastasia defende redefinição do pacto federativo para distribuir melhor recursos arrecadados pela União , publicada dia 19/04.
Há mais de um século a grande imprensa privada dedica-se a noticiar prioritariamente os fatos ocorridos no eixo Rio-São Paulo. São informações suficientemente detalhadas e aprofundadas que abordam desde o planejamento estratégico dessas metrópoles até o mais simples fato cotidiano, como a inauguração de um novo boteco. Ou seja, a população da região sente sua vida retratada, seus problemas debatidos e sua cultura privilegiada por meio da cobertura midiática. O resultado é a consolidação de uma identidade forte, de um sentimento de pertencimento, de uma cidadania vigorosa onde as pessoas protagonizam sua própria história.
Inversamente, tal concentração da grande mídia comercial causa um sentimento de exclusão da população das demais regiões do país que, em muitos casos, passa a viver e a discutir realidades alheias, prejudicando o fortalecimento de sua própria identidade.
Os objetivos que justificam a existência da EBC e, conseqüentemente, da Agência Brasil, em parte sugerem que por meio da complementaridade o jornalismo público se faça presente onde a mídia privada não vai, tanto geograficamente quanto no tipo de informação que proporciona ao público – se há que se noticiar um fato já amplamente coberto pela mídia privada, que seja com uma abordagem diferenciada, contextualizada, que explique porque determinado fato ocorreu e não se limite a simplesmente constata-lo.
Uma, entre outras inúmeras possibilidades de diferenciação do jornalismo público, é a pauta abordando assuntos esquecidos ou menosprezados pelas demais mídias.
Neste contexto insere-se a cobertura local de como as políticas públicas chegam até o cidadão – como ele avalia a saúde, a educação, o transporte coletivo, a prevenção de catástrofes naturais, a infra-estrutura urbana, o saneamento básico e os serviços públicos prestados pelo Estado. Se o jornalismo público conseguir trazer para o debate a voz do cidadão excluído e extrair dela toda a diversidade e a universalidade presentes, ele estará cumprindo com uma importante parte de sua missão e complementando o sistema comunicacional.
Ao mesmo tempo, se o jornalismo da empresa pública conseguir apresentar uma abordagem diferenciada dos fatos e acontecimentos em vez de simplesmente disputar o mesmo espaço noticioso desfrutado pela grande mídia comercial estará abrindo avenidas por onde desfilará triunfante a cidadania. Valter de Paula não verá a realidade do Nordeste sendo retratada apenas em episódios de catástrofes naturais e Bruno Lana saberá porque o metrô de Belo Horizonte não consegue avançar.
Assim talvez não seja necessário mudar o nome da Agência ‘Brasil’ como sugere o leitor nem restem duvidas de que a EBC não esteja ‘loteada e a serviço dos interesses do governo federal’.
Até a próxima semana.
(*) – DECRETO No- 6.246, DE 24 DE OUTUBRO DE 2007
CAPÍTULO II
DA FINALIDADE, PRINCÍPIOS, OBJETIVOS E COMPETÊNCIAS
Art. 2o A EBC tem por finalidade a prestação de serviços de radiodifusão pública e serviços conexos, com observação dos seguintes princípios:
I – complementaridade entre os sistemas privado, público e Estatal;
(**) – utilizamos aqui a expressão ‘jornalismo público’ como sinônimo de ‘jornalismo praticado pela empresa pública de comunicação’ e não como uma categoria de jornalismo uma vez que entendemos todo jornalismo como sendo uma atividade pública.’