‘Fiscalizar o planejamento e a execução das políticas públicas é uma das principais funções sociais da imprensa, ou deveria ser. Políticas públicas geram e orientam serviços públicos prestados à população, direta ou indiretamente pelo Estado.
Fiscalizar a qualidade, a eficiência e a eficácia destes serviços é uma das tarefas primordiais que a sociedade moderna delega à imprensa uma vez que cada cidadão, individualmente, teria imensa dificuldade para acompanhar o que o governo faz com o dinheiro arrecadado por meio dos impostos.
A qualidade desta fiscalização e da informação que dela advém servem ao público para tomar decisões fundamentais à sobrevivência. Há muitas atividades entre as quais o Estado é o responsável direto por prover literalmente a sobrevivência do cidadão, principalmente quando se trata da saúde, ou melhor dizendo, da prevenção e do tratamento de certas doenças.
A principal política pública de saúde do governo brasileiro é executada por meio de um grande guarda-chuva de ações chamado Sistema Único de Saúde – SUS. Uma destas ações é a distribuição gratuita de remédios para o tratamento de pacientes portadores de doenças crônico-degenerativas como o mal de Alzheimer. Uma informação prestada pela ABr sobre essa distribuição causou a indignação da leitora Paula Mestrinel.
Escreveu ela: ‘A respeito da reportagem ‘Remédio contra o mal de Alzheimer estará disponível no SUS em 2011’, de 24 de setembro de 2010, gostaria de esclarecer que este medicamento já está disponível no SUS há pelo menos seis anos, desde quando meu pai teve o diagnóstico da doença. Nós recebemos de graça a Rivastigmina via SUS, quando não estava em falta o medicamento em minha cidade, e achei absurda a reportagem ter este ‘gancho noticioso’, já que a novidade, segundo a Agência Brasil, seria dizer que o governo vai ECONOMIZAR [grifo de leitora] para continuar disponibilizando este remédio. A parceria com o Instituto Vital Brasil, de Niterói, viabilizará esta economia para o governo, ‘copiando’ um medicamento que já existe faz tempo. Em vez de o governo investir nas pesquisas para que realmente se descubra a cura para esta doença, acredito que seja mais fácil economizar, não é mesmo? São ‘apenas’ 26 milhões de pacientes no mundo todo com mal de Alzheimer. E, a cada cinco pessoas, pelo menos duas ou três desenvolverão a doença no futuro. Se isso não for considerado grave pelo governo, não sei como será o nosso futuro e também o da saúde pública no País.’
A Agência Brasil respondeu: ‘… a repórter foi fiel ao transmitir as explicações recebidas da especialista Tereza Lowen, do Instituto Vital Brasil, sobre a produção de medicamento para combate ao mal de Alzheimer. Repetindo aqui novo esclarecimento buscado hoje(27) pela repórter junto a Tereza Lowen, informo que a leitora em questão está correta quando diz que seu pai recebe há anos o remédio de graça no SUS. Só que ela recebe o medicamento de marca. E o Instituto Vital Brasil passará a produzir o genérico do Rivastigmina. Essa é a novidade. Não existe nada sendo copiado, como entendeu a leitora. A produção do genérico do Rivastigmina no Brasil resultará em economia para o Ministério da Saúde, que deixará de pagar tão caro à empresa privada fornecedora, conforme a matéria ressalta, além de aumentar o acesso da população ao medicamento contra a doença.’
Realmente, o ‘gancho noticioso’ não é que o governo vá distribuir remédio contra a doença a partir de 2011, pois a Rivastigmina é disponibilizada há anos pelo SUS, ao contrário do que afirma a notícia como sendo uma novidade. A notícia é o desenvolvimento de um similar nacional, genérico, a partir de uma das parcerias estabelecidas pelo Ministério da Saúde com o Instituto Vital Brasil e laboratórios privados.
Em uma série de três reportagens, publicadas entre os dias 21 e 24 últimos, a Agência Brasil apresentou uma discussão sobre o diagnóstico e o tratamento da doença marcando a passagem do Dia Mundial do Alzheimer. A série apresenta a situação atual da doença no Brasil, mas não faz nenhuma referência à pesquisa para erradicá-la nem à eficiência das ações levadas a cabo pelo SUS. Apenas cita que ainda é uma doença para a qual não existe cura. No entanto, para saber como a politica pública chega a seu destino, seria importante que pacientes, que gozem ou não de atenção por parte do Ministério, fossem ouvidos.
Apesar da Rivastigmina (cujo nome fantasia é Exelon) responder por aproximadamente 75% dos medicamentos distribuídos pelo Programa de Assistência aos Portadores da Doença de Alzheimer no âmbito do SUS, a quebra de sua patente, que pertence à empresa farmacêutica Novartis (Suíça), não é discutida na matéria da ABr.
Para se analisar a eficácia de uma politica pública é fundamental saber o numero de pacientes efetivamente beneficiados por ela e também quanto e como (em quais doenças) é gasto do dinheiro público para realizá-la. Nas matérias da ABr há referência às metas de atendimento mas não ao orçamento do SUS para custear a distribuição de remédios classificados como excepcionais, ou de ‘alto custo’.
No documento ‘Análise do Projeto de Lei Orçamentária Anual – PLOA 2010 e os Recursos Destinados ao Ministério da Saúde’ (disponível aqui), publicado pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde, encontramos a evolução da execução orçamentária no que se refere aos gastos com medicamentos entre 2004 e 2009. Os gastos do Ministério de Saúde com medicamentos excepcionais em 2009, na ordem de R$ 2,6 bilhões, foram superiores as gastos com medicamentos básicos e estratégicos (incluídos os gastos com medicamentos para DTS-AIDS), de aproximadamente R$ 1.8 bilhões.
Em 2004, a soma dos gastos com estes dois tipos de medicamentos (excluídos os gastos com medicamentos para DTS-AIDS), era praticamente similar aos gastos com medicamentos excepcionais (em torno de R$ 830 milhões). Em 2009, o gasto com medicamentos excepcionais (R$2,6 bilhões) passou a ser cerca de 2,5 vezes superior à soma dos gastos com medicamentos básicos e estratégicos (R$1,1 bilhões). No atual ritmo de crescimento da população idosa (potenciais portadores da doença de Alzheimer) é de se esperar que os gastos com medicamentos excepcionais passarão a absorver parcelas crescentes do orçamento do Ministério da Saúde, num contexto onde as necessidades de medicamentos básicos e estratégicos continua insatisfeita. Esta pode ser uma das muitas abordagens do problema para ajudar o leitor a entender a politica pública de distribuição gratuita de remédios pelos SUS.
Até a próxima semana.
Nota: Medicamentos essenciais – Segundo a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME) do Ministério da Saúde, ‘esses remédios visam o tratamento das doenças mais prevalentes como diabetes (incluídos as insulinas), hipertensão arterial, asma, rinite, verminoses, medicamentos contraceptivos e insumos para o planejamento familiar, entre outros. Alguns destes medicamentos são comprados pelo Ministério da Saúde e entregues aos governos estaduais para sua distribuição gratuita aos municípios.
Medicamentos estratégicos: são aqueles que garantem aos usuários do SUS o acesso ao tratamento de doenças que configuram problemas de saúde pública, cujo controle e tratamento tenham protocolo e normas estabelecidas e que garantam alta relação custo-efetividade, além de grande impacto socioeconômico. Estes medicamentos atendem aos Programas Nacionais de DST/AIDS , Tuberculose, Hanseníase, Lúpus, Tabagismo, Endemias Focais (Malária, Leishmaniose, Esquistossomose, Meningite, Doença de Chagas, Peste, Tracoma, Filariose, Cólera e Micoses Sistêmicas), Sangue e Hemoderivados e os Imunobiológicos. O financiamento e provisão destes medicamentos, diferentemente dos que integram a Farmácia Básica é de responsabilidade exclusiva do Ministério da Saúde.