‘‘Bandido morto durante assalto a posto’ – manchete da pág. 18 do jornal Diário do Nordeste, edição de 13/3. ‘Segurança reage e mata ladrão’ – chamada na primeira página do O Povo, edição do mesmo dia, com o título interno (pág. 18) ‘Adolescente é morto em tentativa de assalto’. Relato do Diário do Nordeste: ‘Um assaltante foi morto a bala por um vigilante, e outro preso, ao tentarem assaltar o posto Petrocar (…) os dois homens (…) de revólver em punho, anunciaram o assalto. O vigilante de serviço reagiu, dando início a uma troca de tiros com os delinqüentes. Atingido com um tiro no peito esquerdo, um no ombro direito e outro na boca, um dos bandidos morreu, enquanto o outro (…) foi preso’.
O Povo narra o fato assim: ‘O adolescente José Roberto Rafael dos Santos, 17 (na verdade o rapaz faria 17 anos neste sábado) foi morto a tiros, enquanto José Wilson Xavier, 25, acabou preso em flagrante, durante uma tentativa de assalto a uma loja de conveniência de um posto de gasolina (…) De acordo com frentistas ouvidos pela Polícia, o adolescente e José Wilson estavam armados de faca e cossoco (…) Segundo coronel Deladier Feitosa, chefe do Comando de Policiamento da Capital, tanto o adolescente quanto José Wilson já tinham várias passagens pelo 26º DP (Edson Queiroz) por conta de assaltos’. Cossoco, na gíria policial, é uma espécie de faca artesanal. O termo costuma ser repetido por repórteres que fazem a cobertura da área policial, sem maiores preocupações com a linguagem. O Povo não ouviu o preso e nenhuma pessoa da família do morto.
Na terça-feira, fui informado que a história estaria mal contada. Foi-me entregue a ficha policial dos dois rapazes, um documento da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social. Nela, contrariando o que dissera o coronel Deladier Feitosa, não havia nenhuma ocorrência policial anterior registrada em nome deles. Avisei à Redação, que destacou um repórter para investigar o caso.
O Diário do Nordeste volta ao assunto na quarta-feira: ‘Família diz que jovem morto não era bandido’, título em duas colunas na pág. 13. O texto: ‘A família do jovem José Roberto Rafael dos Santos protestou ontem diante das informações dando conta de que ele foi morto ao tentar assaltar um posto de combustível…´ Nenhuma palavra sobre o próprio jornal tê-lo chamado de ‘bandido’ em uma manchete de seis colunas.
Quinta-feira é a vez do O Povo apresentar outra versão. O título de seis colunas (pág. 3), diz o seguinte: ‘Morte, prisão, contradição e equívoco’. A notícia, ocupando meia página, ouve a família, e aponta várias contradições na versão da polícia, divulgada pelos jornais. O texto anota: ‘Em apenas um dia, mais de mil moradores do bairro Edson Queiroz (…) subscreveram um abaixo-assinado refutando (as acusações contra os dois jovens)…´ Nesta edição, o coronel Deladier, reformula a declaração inicial, de que os dois teriam passagem pela polícia, dizendo agora que havia falado em ‘pequenos furtos’, reproduzindo o que escutara ‘de pessoas que estavam na cena do crime’. O texto do O Povo ainda anota que ‘veículos de comunicação definiram o adolescente como bandido’, mas não toca no fato de o próprio jornal ter classificado o jovem morto como ‘ladrão’ em sua primeira página.
Sobre o revólver que estaria com jovens, não mais se voltou a falar, mesmo porque eles não o tinham, portanto não houve ‘troca de tiros’, como escreveu o Diário do Nordeste. Também nenhuma arma branca foi apresentada pela polícia. O caso ainda está para ser esclarecido completamente, mas o fato é que a história inicialmente contada pelos jornais não se sustenta.
Desde que assumi a função de ombudsman, um dos pontos freqüentes em meus comentários internos, é a crítica à facilidade em se reproduzir a versão da polícia, como se fosse verdadeira, sem nenhum tipo de investigação. Basta abrir os jornais, qualquer dia, para ser ler que a polícia ‘trocou tiros’ com ‘assaltantes’, não sendo incomum o ‘tiroteio’ acabar na morte de ‘bandidos’. Se não se considera admissível, a priori, duvidar da palavra da polícia, também é proibido ao jornalista aceitá-la como verdade absoluta. A realidade é muito mais complexa do que uma luta entre ‘mocinhos’ e ‘bandidos’. Abuso por parte de policiais, infelizmente, não é algo incomum. Tudo isso, deveria deixar alertas os repórteres que cobrem a área.
No entanto, o mais freqüente, é fazer-se uma cópia do BO (Boletim de Ocorrência), de forma acrítica, muitas vezes repetindo-se no jornal os toscos jargões policiais. O mínimo de cuidado que os jornais deveriam ter, se não puderem investigar cada caso em profundidade, é atribuir cada declaração à polícia, sem assumi-la como verdade. Além disso, até que se prove a culpa, é preciso deixar de tratar como ‘ladrão’, ‘bandido’, ‘marginal’ ou ‘delinqüente’ aqueles que os policiais acusam de criminosos. Se polícia quer se de travestir de juiz e executor, ela que o faça – e arque com as conseqüências – mas sem o beneplácito ou a conivência dos jornais.
O editor interino de Cotidiano e diretor de Redação do O Povo, Carlos Ely Abreu, disse que os questionamentos vão contribuir para aperfeiçoar a cobertura policial. Ele cita a disposição em investigar mais profundamente este caso como um passo nessa direção. Após ter dado essas declarações ao ombudsman, o diretor de Redação publicou o artigo ‘Um aprendizado’ (edição de sábado, 19/3, pág. 5) em que reconhece o equívoco do jornal em relatar o caso da maneira criticada acima. Na mesma edição, o jornal publica uma notícia com a declaração do vigilante do posto, que confessou ter feito os disparos, na qual ele afirma que os jovens tinham ‘atitudes suspeitas’, mas não ‘anunciaram o assalto’.
O Diário do Nordeste não volta mais a falar no fato. Consultado, o diretor editor do Diário do Nordeste, Ildefonso Rodrigues, disse preferir não comentar o assunto.
(Faltaria ainda comentar o massacre que normalmente sofrem os acusados das camadas pobres da população em programas ‘populares’ de TV, mas isso seria um capítulo à parte.)’