Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Plínio Bortolotti

‘O anúncio de que haveria um grupo de extermínio formando por integrantes da Polícia Militar do Ceará, parece ter caído como um raio em céu azul, quando o Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão, divulgou a notícia no dia 26 de maio. Mas o fato não é novo. Pelo menos desde 2002, tanto os jornais como as autoridades estaduais dispunham de fortes indícios da possível ação de grupos clandestinos de segurança a serviço de empresas privadas.

No dia 8 de julho de 2002, a Comissão da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-CE) e outras entidades ligadas à proteção dos direitos humanos divulgaram, em entrevista coletiva, uma representação que fora entregue à Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, pedindo investigação sobre o assunto. No documento, era citada uma declaração do delegado da Polícia Civil Carlos Cavalcante, na qual ele afirmava estar investigando a `possibilidade de a rede de farmácias Pague Menos estar pagando policiais militares para fazer a sua segurança clandestina´, pois `nos últimos 24 meses foram registradas 13 mortes´ de supostos ladrões logo após ter acontecido o roubo em alguma loja do grupo.

No dia seguinte à entrevista coletiva, O Povo publica notícia sobre o assunto. O texto inicia-se da seguinte maneira: `A rede de farmácias Pague Menos é acusada de utilizar um esquema de segurança clandestina em suas lojas, com a participação de policiais militares à paisana. (…) O relato faz parte de representação apresentada ontem à Procuradoria Geral da República (PGR) no Ceará…´ (edição de 9/7/2002, pág. 9). A partir dessa representação da OAB, a Polícia Federal começa investigações sigilosas, produzindo provas que agora estão vindo a público.

Em levantamento feito pelo Banco de Dados do O Povo, verifiquei que entre o ano de 2000 e 2002 foram assassinados 13 `assaltantes´, depois de atacarem alguma loja da rede de farmácias Pague Menos. No mesmo período, 11 pessoas foram baleadas em circunstâncias parecidas; algumas ficaram com seqüelas graves, uma delas teve uma perna amputada, outra ficou paraplégica. Todas as vítimas eram jovens, várias, menores de idade, em um dos casos o morto tinha 14 anos. Em 2002, um cliente também foi assassinado na loja da avenida Sargento Hermínio, por um homem não identificado, que o atingiu a tiros, possivelmente por tê-lo confundido com um assaltante.

A forma como essas mortes aconteciam seguiam um padrão. Logo após o assalto, um `transeunte´, `uma pessoa que passava pelo local´, `um motorista, que não teve a placa do veículo anotada´, `dois homens não identificados em uma motocicleta´, `um desconhecido´, surgiam misteriosamente e passavam `trocar tiros´ com os supostos bandidos. Os trechos entre aspas foram anotados, literalmente, das notícias dos jornais. Esses atiradores nunca eram identificados.

Pulando para os fatos mais recentes, no dia 24 do mês passado, a procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Ela Wiecko de Castilho encaminhou ao ministro Nilmário Miranda, presidente do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, um `relatório da atuação em Fortaleza do grupo de extermínio da Polícia Militar´, pedindo a criação de uma comissão especial para acompanhar o caso. No documento, a procuradora afirma que `investigações da Polícia Federal comprovam atividades de um grupo organizado de forma ilegal e clandestina para realizar a segurança da rede de farmácias Pague Menos e de outros estabelecimentos comerciais, sob a direção do oficial PM, major José Ernane de Castro´.

Mesmo com a freqüente a citação do grupo Pague Menos nas investigações e nos documentos oficiais relativos ao caso, O Povo reluta em reproduzir esses indícios em suas páginas. Na primeira notícia sobre o assunto (25/5), a rede não é citada. Na edição de 28/5, quando o caso já tinha tomado grandes proporções (pela divulgação na TV), o nome da rede de farmácias é mencionado na pág. 9, em notícia sob o título `Farmácia nega contratação de segurança clandestina´, reproduzindo declaração do superintendente do grupo, no qual ele nega envolvimento da empresa no caso. No entanto, o nome do grupo não aparece na capa do jornal e nem nos textos da pág. 8, que abriram a reportagem. Nas edições seguintes, o nome da rede some das páginas do jornal, apesar de o assunto ter-se mantido em destaque.

Para o diretor da Redação Arlen Medina, `o nome da rede de farmácia foi citado quando houve um fato objetivo – a divulgação das gravações telefônicas (refere-se à edição de 28/5). Não escondemos o fato. Fomos o primeiro veículo da mídia a divulgar o assunto (edição de 25/5). E trouxemos o tema como manchete quando foi pertinente. É o que acontece na edição deste sábado, a partir do pronunciamento do Ministério Público (refere-se à edição de ontem, em que o nome da rede é citado por estar incluída em inquéritos sobre homicídios)´.

A exposição que faço acima não autoriza a supor que o jornal tenha o direito de condenar antecipadamente a empresa, um mal que poderia acarretar conseqüências irreparáveis. Mas também não se justifica a sua preservação artificial. Se o nome da rede de farmácias, por motivo de cautela jornalística, tivesse de ser preservado, o mesmo deveria ocorrer com os outros supostos envolvidos. Não é incomum a imprensa tratar de forma diferente pessoas e empresas, a depender de seu nível na escala social. No caso específico, ao agir dessa maneira, o jornal deixou de oferecer aos leitores um noticiário o mais próximo possível da realidade dos fatos. Investigações da Polícia Federal concluem que um grupo clandestino usurpou as funções do Judiciário, transformou-se em juiz e executor de sentenças, aplicando uma pena inexistente no Brasil, atribuindo-se o direito de executar suspeitos. Fatos dessa natureza constituem-se afronta intolerável aos direitos humanos e ao Estado Democrático de Direito. Por isso, respeitada a ética profissional, observando-se o direito de defesa e atentando-se para os cuidados necessários ao se divulgar as informações, todos os aspectos do caso têm de vir à luz, para que o leitor possa dimensioná-los e formar sua própria convicção.’