Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Plínio Bortolotti

‘Na edição de sábado (19/11), O Povo publicou matéria redigida ao estilo dos jornais sensacionalistas. Sob o título ‘Caso da Hilux se espalha e gera medo na população’ (manchete da pág. 19), com destaque na capa do jornal, informava-se sobre boatos que estavam apavorando os moradores da Barra do Ceará: ocupantes de um carro preto, modelo Hilux, estariam seqüestrando crianças para extrair seus órgãos para a venda.

Há dois aspectos bem definidos nessa questão: 1) de acordo com o relato do repórter, pelos depoimentos colhidos, é real o temor a tomar conta dos moradores. Portanto essa uma é verdade indiscutível; 2) o jornalista visitou o bairro, falou com o comandante da companhia da Polícia Militar responsável pela área e verificou os registros na delegacia de polícia: nada encontrou que confirmasse os seqüestros. Portanto, apesar do temor dos moradores, o fato a gerar o medo não era verdadeiro.

A verdade

Frente a isso, o que deveria fazer o jornal? Deixar de publicar a história? Não, pois havia um fato veraz a ser relatado: o temor provocado nos moradores pelos boatos era real – a ponto de mães não deixarem os filhos saírem de casa e crianças faltarem às aulas. O que diferencia um jornal sério de um sensacionalista é o modo de narrar essas histórias. Os sensacionalistas não mentem descaradamente, pois dessa forma a mágica seria facilmente descoberta e ninguém se interessaria por lê-los; eles trabalham em uma área cinzenta em que a mentira se entrecruza com a verdade. Um ponto aumentado aqui, uma ênfase ali — e oferece-se uma história fantástica ecoando verossimilhança. Os jornais sóbrios, preocupados em informar, buscam estabelecer uma linha clara entre uma coisa e outra.

O boato

Na matéria publicada pelo O Povo, a sugestão de que o rapto de várias crianças poderia ser verdadeiro, começa nas palavras que abrem o resumo do texto: ‘Ficção ou realidade?’; continua no primeiro parágrafo: ‘Crimes em seqüência ou lenda urbana? A notícia (sic) sobre o desaparecimento de adolescentes nas Goiabeiras, na Barra do Ceará, está gerando dúvidas na população e na polícia…’ e segue no quadro destacado em letras maiores, na qual se escreve: ‘As especulações indicam ainda que, depois dos seqüestros, os órgãos das crianças estariam sendo retirados e vendidos’. A ambigüidade está nos espaços mais visíveis da página e percorre todo o texto. Ou seja, toma-se um fato real (o temor), uma girândola de boatos, mistura-se os dois ingredientes, dando-se ares de verdade àquilo que é apenas ficção.

Somente nas três últimas linhas do último parágrafo é que se anota: ‘O comandante da 3ª Companhia do 5º Batalhão da Polícia Militar, major João Batista, afirma (…) que nenhuma evidência concreta dos supostos crimes foi registrada até agora’. Essa informação deveria estar em destaque, pois o papel do jornal é esclarecer e não fazer o inverso, fomentando boatos e crendices.

Divergência

A editora de Cotidiano, Tânia Alves, afirma ter ‘relutado’ em divulgar o caso, mas diz estar ‘convicta’ de ter tomado a ‘decisão acertada’, pois os boatos ‘estão mudando a rotina das pessoas, principalmente na periferia’. Até aqui, não temos divergências. Elas surgem quando Tânia afirma não ter visto sensacionalismo na forma como o texto foi escrito e editado. A editora também afirma que a história do carro misterioso parte do desaparecimento de um adolescente, na Praia das Goiabeiras (Barra do Ceará), registrado na delegacia de polícia do bairro, assunto divulgado na sexta-feira (18/11). Essa notícia foi publicada na página 8, com o título ‘Boatos sobre ação de Hilux assustam moradores’, mas evidentemente, não dá como certo que o desaparecimento tenha relação com a ‘Hilux preta’. Também não sei por que, na matéria publicada no dia seguinte (19/11) não se fez nenhuma referência a esse caso, se a editora o considerou importante para contextualizar o assunto.

Revelação

No texto publicado no dia 18/11 há uma reveladora declaração do delegado Max Quaresma: ‘Ainda não ouvi nenhuma testemunha que tenha visto a Hilux apanhando algum adolescente’. A afirmação do policial é esclarecedora, por revelar um padrão nesses boatos. Alguém reconta aquilo que ouviu falar, mas nunca se acha quem, de fato, viu o fato acontecendo. Algum tempo atrás surgiram insistentes boatos de que crianças estariam sendo seqüestradas em um shopping da cidade. Depois, elas reapareciam no mesmo local com um corte no abdome, um sinal que lhes teriam extraído órgãos. Ninguém atentava para a seguinte questão: por que criminosos dessa estirpe teriam o cuidado de devolver as crianças? Uma vez na redação recebi uma das várias ligações que ‘denunciavam’ os seqüestros. A pessoa jurava que o fato era verídico e insistia para que o jornal investigasse. Perguntei como o leitor tivera conhecimento da história: ‘Por um amigo que conhece uma das vítimas’. Telefonei. Este me diz que teria ouvido de outra pessoa, que já soubera por um terceiro. A lista não teria fim.

(Uma certeza: da mesma forma que esse assunto surgiu, ele sumirá das páginas dos jornais: sem deixar rastros.)

A lenda

Escrevendo a coluna, lembrei-me do faroeste O homem que matou o facínora, do diretor John Ford. O dono do jornal e um jovem repórter querem saber por que um importante senador de Washington — que fez carreira depois de ter matado um perigoso bandoleiro — volta à poeirenta cidadezinha do Oeste, onde iniciara sua vida política, para assistir ao enterro de um velho, pobre e insignificante vaqueiro. Com o filme passando em flashback, o senador conta a verdade aos jornalistas: o velho cowboy matara o bandido, tendo ele ficado com os méritos para ascender politicamente. Frente à revelação, o jovem repórter olha aflito para o jornalista mais velho e pergunta: ‘E agora?’ Sem titubear, ele responde: ‘Quando a lenda for mais interessante do que a realidade, imprima-se a lenda’. É uma bela lição de Ford para os ficcionistas, mas vetada aos jornalistas.’