Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Plínio Bortolotti

‘A depender da leitura dos jornais para saber o que está acontecendo no conjunto Rosalina, o leitor terá dificuldade em se informar. O conjunto originou-se de uma ocupação iniciada em 1996 e lá moram cerca de duas mil famílias, segundo dados da Prefeitura de Fortaleza. Localizada no bairro Itaperi, Rosalina é uma das grandes áreas de risco da cidade e pauta freqüente dos jornais. O conjunto voltou ao noticiário em 17 de fevereiro, depois que um morador morreu baleado, quando a Guarda Municipal e a Polícia Militar promoviam a demolição de algumas casas, construídas irregularmente, segundo a prefeitura, em local em que seria iniciado um projeto habitacional para a comunidade.

O material publicado padece de alguns problemas, infelizmente, comuns no jornalismo: a fragmentação e a falta de contextualização. A primeira notícia sobre o assunto, na editoria de Cotidiano do O POVO, sob o título ‘Morador é morto após ação de desocupação em área de risco’ (17/2), anota: ‘No centro do impasse está a decisão de Prefeitura de Fortaleza de construir 1.800 casas no local’; e que a ação teria ‘resultado na demolição de 30 construções em andamento’, segundo a declaração do vereador Guilherme Sampaio (PT), líder da prefeita Luizianne Lins na Câmara dos Vereadores. O repórter não esteve no local do conflito; o texto foi escrito a partir de declarações de pessoas envolvidas no caso.

Na edição de 23 de fevereiro, fica-se sabendo o seguinte: no terreno de 24 hectares há duas ocupações – a original, na qual mora a maiorias das famílias (cerca de 1.800) e outra, começada a partir de 2005, com cerca de 200 famílias. Na ‘nova’ ocupação, é que houve o enfrentamento, pois o local fora previamente demarcado para dar lugar às primeiras construções. Revela-se que o grupo original defende o início imediato do projeto da prefeitura, opondo-se aos moradores mais recentes, que tem outras reivindicações. Valdemir Catanho, chefe de gabinete da prefeita, diz não haver conflito com as famílias da ocupação original e que o grupo menor seria dirigido por ‘falsas lideranças comunitárias’, com o objetivo de negociar terrenos em benefício próprio. Um desses ‘falsos líderes’, segundo indica o chefe de gabinete, seria Eronildo Santos, apontado por ‘antigos moradores como cabo eleitoral do vereador Carlos Mesquita (PMDB)’, conforme anota o texto da notícia. O grupo de novos ocupantes mantém um acampamento em frente à sede da prefeitura para protestar contra a morte do morador.

Com o título ‘Líder comunitário rebate acusações da prefeitura’, o jornal volta ao tema no dia seguinte (24/2). Eronildo diz não estar ‘a serviço de nenhum político’; que teria sido ‘chamado’ pelos novos moradores para defendê-los; identifica-se como ‘evangélico’ e diz ser a sua igreja e os próprios manifestantes a colaborarem para manter o acampamento em frente à prefeitura. (Nesta edição atribui-se ao chefe de gabinete a ‘acusação’ de que Eronildo trabalharia para um vereador do PMDB, contrariando a versão do dia anterior.)

ESCLARECIMENTOS

Para juntar essas informações, foi necessário pinçar dados dos vários textos publicados, pois nenhum deles consegue dar uma idéia coerente do que esteja ocorrendo. Além disso:

1) Não se informa se a Guarda Municipal tinha o poder legal de derrubar as casas ou se havia alguma ordem judicial sustentando a ação, acompanhada por policiais militares.

2) Segundo o líder da prefeita na Câmara dos Vereadores, ‘nenhum morador estava nas construções derrubadas’; ele também afirma que a morte não foi causada pelos guardas municipais. O comandante da Polícia Militar, Deladier Feitosa, declara que ‘nenhum policial usou arma na ação’ e ainda levanta a hipótese de que a morte pode ter ocorrido durante troca de tiros entre os próprios moradores: ‘Tem muito marginal lá’ (edição 17/2). O jornal não falou com moradores para confrontar as declarações oficiais.

3) Anotou-se em algumas notícias que foram derrubadas ‘casas de alvenaria e taipa’; em outras que as casas ou ‘barracos’ estavam ‘em fase de construção’. As casas estavam terminadas ou não? Nelas havia moradores ou não?

4) Quem é Eronildo Santos? Não se verificam as declarações de que ele estaria a serviço de um vereador do PMDB. Também não se checa as informações, repassadas pelo próprio líder comunitário, de que ele teria sido ‘chamado’ pelos moradores para comandá-los. Quem o chamou? Ele mora no conjunto Rosalina? Qual é a igreja, de que ele faz parte, interessada em ajudar os ocupantes?

5) Não se consegue informar de forma coerente qual é a proposta dos moradores liderados por Eronildo. Na edição de 18/2, registra-se uma declaração dele na última frase do texto: ‘Eronildo acrescenta que a maioria dos moradores da comunidade não querem (sic) o conjunto habitacional do projeto municipal’; em 24/2: ‘Segundo Eronildo, os moradores não querem a construção de um conjunto habitacional, mas obras de saneamento básico e estrutura para a área já ocupada’. Conforme anota a coluna ‘Política’ (24/2), além da construção de 1.081 casas, 750 apartamentos e 50 pontos comerciais, ‘o projeto vai levar para a comunidade infra-estrutura de água, esgoto, energia, arruamentos e postos de saúde’. Se assim for, qual seria a proposta real dos novos ocupantes? O jornal deixou de registrá-la ou inexiste proposta alternativa? Eronildo fala em nome de quem? Dos novos moradores? Dos antigos? De todos? De ninguém? Deixou-se também de ouvir representantes da ocupação original.

6) Ainda há divergência entre a prefeitura e Eronildo sobre o número total de famílias na ocupação. Segundo a prefeitura, são cerca de duas mil famílias. Eronildo fala em seis mil, pois existiriam casas em que moram ‘duas ou três famílias juntas’. Não foram consultadas fontes independentes e nem feita nenhuma verificação no local.

7) Em casos assim é necessário um pouco de didatismo, de informações adicionais no entorno do fato originador da notícia. Nenhum repórter gastou sola do sapato no conjunto Rosalina para de lá trazer um relato um pouco mais completo, objetivo, preciso e esclarecedor, de modo a permitir aos leitores formularem seu próprio juízo sobre assunto de tamanha importância.’