‘Quase todo mundo tem um amigo chato, que faz questão de contar o fim do filme, quebrando o encanto dos que ainda não o viram. Agora, o mau hábito está contaminando os jornais. Isso se pode observar na resenha ‘Final feliz para Harry Potter’ (Vida & Arte, edição de quarta-feira), a respeito do livro Harry Potter e as Relíquias da Morte, da escritora escocesa J. K. Rowling, que ainda será lançado em português. No primeiro parágrafo conta-se o segredo principal do livro e, no decorrer do texto, revela-se o destino dos personagens mais importantes. A crítica foi escrita por Daniela Ortega, da Folhapress, agência de notícias com a qual O Povo mantém contrato editorial para publicar seus artigos e notícias.
Uma leitora telefonou para dizer que considerava ‘falta de respeito’ revelar o fim do livro, sem nenhum aviso para quem não quisesse sabê-lo antes de ler a obra. Um leitor enviou um e-mail perguntando: ‘Qual o sentido de uma resenha começar contando o final da história? Isso se agrava quando se trata de uma série infantil, que há vários anos se arrasta, gerando expectativa sobre a sobrevivência do herói’. Ele diz que, na internet, é comum textos revelarem segredos de obras, mas, normalmente, vêm com o alerta de spoiler (do inglês), algo como ‘desmancha-prazer’, como opção para se sustar a leitura. O leitor ainda pergunta: ‘Não seria possível fazer um texto interessante sem apelar para o sensacionalismo de revelar todos os mistérios da história?’
Para a editora-adjunta Regina Ribeiro, que diz ‘respeitar profundamente’ a opinião dos leitores, tudo o que se escreve sobre o personagem Harry Potter é muito lido, pois mesmo as pessoas que ‘não são fãs’ e ‘nem se descabelam pela saga do bruxo’, têm interesse em conhecer a história do livro, pois convivem com pessoas ‘que vão falar ou estão falando sobre o tema’. Regina lembra que a ‘internet está cheia de especulações’ sobre se Harry Potter ‘ia ou não morrer no último livro’, por isso, ela não vê ‘desrespeito nenhum’ em revelar o fim da história, pois existiram ‘zilhões’ de pessoas querendo sabê-lo: ‘Deixar de publicar a informação para não chatear os fãs mais aguerridos chega a ser risível’, afirma. Portanto, se ‘o jornalismo acompanha fatos que despertam interesse dos leitores’, a decisão de desvelar os principais segredos da trama foi ‘jornalisticamente correta’, argumenta a editora.
Esclarecimento
1) Os leitores que encontraram em contato comigo não estão entre os que se ‘descabelam’ (eu usaria uma palavra menos indelicada) por Harry Potter. Fiz questão de perguntar isso – não que fizesse diferença quanto à pertinência da queixa deles – mas para evitar possíveis mal-entendidos. A leitora diz que lê os livros, sem se envolver com a movimentação em torno do personagem, mas preocupou-se com a irmã, de 13 anos, a quem alertou sobre o teor da resenha, temendo que ela ‘entrasse em pânico’ se soubesse antecipadamente como termina a série. O leitor escreve: ‘Costumo ler todo tipo de livro de ficção, desde os infantis, como Harry Potter ou Desventuras em Série [Daniel Handler], até clássicos como Guerra dos Mundos [H.G. Wells], Frankenstein [Mary Shelley] ou Drácula [Bram Stocker]. Não sou fã cativo, nunca me vesti de bruxo (ficaria meio ridículo, tenho 25 anos), só acompanho a série’.
2) Ao contrário do que diz a editora, a polêmica não é ‘risível’, nem irrelevante, e está acontecendo no mundo inteiro. Na semana passada o ombudsman do New York Times, Clark Hoyt, comentou o assunto, a partir de queixas dos leitores a respeito de uma resenha publicada pelo jornal. Segundo a própria autora do livro J. K. Rowling, ‘o jornalista que escreveu a crítica não respeitou o desejo dos leitores – em sua maioria, crianças – de poder descobrir sozinhos o final da história’. E o artigo nem contava muitos segredos, pois o ombudsman do jornal americano, chegou à conclusão que a resenha não revelava ‘o final ou alguma parte decisiva do livro’. (Ver neste Observatório)
No mundo
Falei com a jornalista Daniela Ortega, da Folhapress. Ela disse que o texto foi publicado também no jornal Agora São Paulo, mas com um ‘olho’ (texto em destaque) alertando: ‘Se não quer saber o que ocorre no último Harry Potter, não leia’, procedimento vem sendo adotado por muitos jornais brasileiros. Na Europa, alguns periódicos divulgaram abertamente os ‘dez segredos’; outros o fizeram com o texto de cabeça para baixo, possibilitando a escolha dos leitores que não quisessem vê-los.
O vale-tudo vigente na internet não pode ser parâmetro para os jornais; é certo que tudo ‘evoluiu’, porém há uma longa tradição entre os críticos de não revelar pontos-chave de uma obra, de modo que o leitor ou expectador possa apreciá-la de seu jeito e de modo integral. O interessante é que escrevi sobre o mesmo tema há um ano (http://www.opovo.com.br/opovo/ombudsman/pliniobortolotti2006/600505.html), quando uma crítica revelou como terminava o filme X-Man 3 – O Confronto Final. Na época, a repórter-resenhista considerou irrelevante o fato de ter contado o fim da história, pois, disse, o importante para os expectadores na ‘fruição do filme’ seria o ‘processo todo até se chegar ao final’. O crítico pode sugerir, estimular, contextualizar o assunto, apontar perspectivas; só não pode ter a arrogância de querer impor seu modo de ver determinada obra; pior do que isso, ser petulante a ponto de achar que pode mesmo substituir o próprio público.’