Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Quinze teses laicas contra a transcendência do X

Entendo por imanência o mundo constituído pelas palavras e as coisas que produzimos e utilizamos, fora de qualquer dimensão religiosa ou transcendental. Imanente é, pois, o mundo semiótico das imagens, da linguagem verbal, da música, da dança, da arte, sob o ponto de vista da palavra; e, por outro lado, o mundo concreto da arquitetura, das empresas, dos objetos, das mercadorias; dos corpos vivos – inclusive o humano – e dos corpos inorgânicos, sob o ponto de vista das coisas.

Para prosseguir com este artigo sustento quinze teses laicas com o objetivo de usá-las para, por um lado, conhecer o funcionamento de nossa atual época transcendental, religiosa e, por outro, propor, por consequência, a sua superação através da afirmação de uma cultura imanente, comum, cooperativa e infinitamente criativa, inventiva, revolucionária.

As quinze teses são:

1. Tudo no mundo humano é imanente, inclusive o que concebemos como transcendente, razão pela qual Deus é imanência, porque foi e é produzido e utilizado por nós, sob o ponto de vista do que temos historicamente feito, como sujeitos coletivos, com as palavras e as coisas.

2. Toda transcendência, qualquer que seja, constitui uma forma de ludibriar a imanência, sendo, pois, uma irresponsabilidade de nós conosco e com os outros seres, porque qualquer transcendência aceita como tal constitui uma forma de recusa do mundo imanente, que é o nosso, o deste planeta, Terra; o deste sistema solar; o desta galáxia.

3. Somos responsáveis por tudo o que temos feito ou deixado de fazer, como individualidade e como coletividade humanas, pela simples razão imanente de que tudo é nosso e, portanto, como dissera o poeta romano Publius Terêncio (195 A.C.), “nada de humano nos é estranho”.

Imanência é explorada e desprezada

4. Vivemos numa civilização de transcendências porque nos recusamos responsavelmente a assumir as consequências individuais e coletivas de nossos atos, escolhas e omissões.

5. Toda forma hierárquica de poder – inclusive as falsamente horizontais, como as pós-modernas – constitui uma estratégia conscientemente orquestrada para fazer com que a maioria de nós não assuma o mundo de forma imanente.

6. Quando não assumimos o mundo de forma imanente, estamos permitindo que sejamos coletivamente roubados, porque legitimamos transcendências e toda transcendência só se legitima roubando o trabalho coletivo da imanência.

7. Toda e qualquer transcendência rouba a riqueza comum das coletividades imanentes não apenas nos fazendo legitimá-las, como transcendência, mas antes de tudo nos colocando numa posição inferior de adoradores de transcendência .

8. Quando aceitamos a transcendência, legitimando-a, a maioria de nós, além de nos inferiorizar, torna-se imaturo e incapaz, enquanto legitimadores de transcendência, de transformar positivamente as nossas adversidades sociais, políticas, econômicas, culturais, psicológicas, amorosas.

9. Só existe uma maneira de produzirmos ações e pensamentos aptos a transformar positivamente o mundo e, por consequência, aptos a facultar justiças coletivas, a saber: assumindo plenamente a imanência de tudo que existe e de tudo que criamos.

10. Para assumir o mundo de forma imanente e produzir justiças coletivas é necessário não apenas entender como a transcendência roubou a vida coletiva das gerações precedentes, mas também ou antes de tudo quais são as estratégias que a transcendência utiliza, no atual presente histórico da humanidade, para continuar roubando-nos a vida coletiva.

11. A história das civilizações transcendentais, que são as que se organizavam através do roubo do trabalho das coletividades imanentes, é igualmente a história da adoração de transcendências.

12. Como a nossa atual civilização é também transcendental, a nossa também adora transcendências.

13. A adoração de transcendência tem um nome antropológico comum: fetichismo.

14. O fetichismo é uma forma de adoração em que o adorado, a transcendência, nos prescreve uma série indefinida de tabus – leis, valores, ritos, crenças – que servem a um duplo propósito: fazer com que não assumamos a imanência da vida e ao mesmo tempo fazer com que gastemos o tempo da nossa imanência para enriquecer e legitimar as transcendências de nossa época.

15. O mundo das transcendências ladras é aquele em que a imanência é explorada e simultaneamente desprezada, humilhada, ignorada, ridicularizada, mal falada, mal vista, mal editada, mal representada. Logo, num mundo de transcendências, tudo que é movimento imanente é mal visto, mal concebido, mal valorizado.

A Deusa do Brasil transcendental

E é precisamente a partir dessas quinze teses que posso finalmente dizer que o objetivo deste artigo é o de analisar como a transcendência nos rouba a vida coletiva no nosso atual presente histórico, razão pela qual a dupla pergunta que deve ser respondida é a seguinte: qual é o fetichismo de nossa época e quais os tabus que o fetichismo atual nos impõe?

Para esse desafio, no entanto, não é preciso ir muito longe porque o sistema de fetiche de nossa atual época nos chega em casa, em tempo virtualmente real, cotidianamente, sobretudo nos dias consagrados, para a maioria de nós, à folga do nosso eterno trabalho imanente e roubado pelas transcendências: no sábado e no domingo.

Para quem tem olhos imanentes para ver – e todos os temos, porque não existem outros –, basta que tenhamos visto o programa TV Xuxa do sábado, dia 2 de julho, para verificarmos à flor da pele ou à flor da telinha global, como funciona, de forma imanente, o sistema de fetiche de nossa época e, por consequência, como tal sistema impõe-nos seus tabus transcendentais. Tal programa foi um especial em comemoração aos 25 anos da Xuxa na TV Globo.TV Xuxa, especial 25 anos é o título querecebeu. Os convidados para esse especial tão transcendentalmente sublime foram os cantores e cantoras mais famosos e conhecidos pelo público brasileiro na atualidade, nos mais diversos gêneros de nossa música popular: Daniel, Zézé Di Camargo & Luciano, Victor & Leo, Caetano Veloso, Maria Gadú, Ivete Sangalo, Durval Lélys, Saulo Fernandes, Aline Rosa, Bruno @ Marrone, Xande (Revelação), Dodô (Pixote), Bruno (Sorriso Maroto), Péricles e Thiaguinho (Exaltasamba).

Todos esses famosos e famosas cantores e cantoras foram convidados para homenagear a Xuxa, adorando-a como a rainha dos baixinhos do Brasil, expressão que prefiro ler da seguinte forma: rainha dos infantilizados imanentes, pelo sistema de transcendência da cultura midiática brasileira, chamado principalmente (ainda) de TV Globo. Como é possível observar, foi um programa de famosos adorando a famosa-mor. Foi, pois, um programa em que transcendentes seres famosos, no universo de nossa música popular midiática, cultuavam a televisiva Deusa do Brasil transcendental, razão pela qual ficou evidente que os transcendentais famosos atuais aceitavam a condição de semideuses para adorar a Transcendência com “T” maiúsculo, embora nos seja apresentada com X, de Xuxa.

Fetichismo, conceito antropológico

Curioso foi especialmente o momento em que a mais recente cantora transcendentalmente talentosa da música popular brasileira – de extração classe mediana –, Maria Gadú, olhava a famosa-mor, Xuxa, com o rosto infantil, como se tivesse diante de uma entidade, um Totem, ao mesmo tempo em que cantava Leãozinho, de Caetano Veloso, o qual, de modo não menos perplexo, infantilizado, sorria o largo sorriso confiante de quem se encontra do lado da rainha da midiática mediocridade, Xuxa, motivo estupefaciente para que Caetano Veloso, ícone do movimento tropicalista, assumisse uma lamentável posição de reverência e de subserviência, como a de deixar-se ser deglutido pela antropofagia de uma Transcendência vazia, encapada por rótulos e clichês, a fim de tornar-se um pouquinho mais transcendental, logo mais vazio, rotular e estereotipado.

Com essa subserviente posição, Caetano Veloso faria corar de vergonha o autor do “Manifesto Antropofágico”, de 1928, Oswald de Andrade, por ter, como um leãozinho inofensivo, mamado nas tetas da Transcendência midiática brasileira, colaborando para que a antropofagia oswaldiana (plataforma utópica, estética e ética através da qual Oswald de Andrade propunha que selecionássemos tudo que as civilizações produziram de instigante, crítico e criativo, para, em seguida, mastigar, ruminar, misturar e, em processo, reinventar-nos, com dignidade, alegria, justiça e afirmação imanente da vida) se tornasse um balaio de gatos de banalidades e de desprezo a tudo que é vivo, porque cria, porque inventa, porque trabalha, porque é imanência.

De qualquer maneira, para voltar ao X da questão, é bom lembrar que fetichismo é um conceito antropológico concebido para pensar as mal chamadas civilizações primitivas, não menos mal designadas, de forma preconceituosa, de pré-modernas, a fim de descrevê-las como irracionais e obscurantistas, por adorarem coisas, objetos, animais, na suposição de que fossem deuses ou pirracentos totens dispostos a (caso não seguissem religiosamente seus tabus ou regras arbitrárias) lançar o caos sobre o mundo.

Uma trindade matriarcal ou feminista

E assim chegamos ao nosso X da questão: a pré-modernidade, o primitivismo e o obscurantismo irradiantes no interior da pós-modernidade brasileira, bastando considerar a adoração global do totem Xuxa, na suposição de que ela seja o epicentro da ordem mitológica dos famosos do Brasil; ordem demarcada pelo totem da fama, como gozo narcísico triunfal; e o inferno do anonimato, como o lugar da perdição de quem tem que dar o duro para viver no caos da imanência roubada e desprezada, como condenação por não ser famoso.

Eis aí fetichismo de nossa época transcendental: a divisão maniqueísta entre famosos e anônimos como a irracional realidade em si que substitui enfeitiçadamente a relação entre opressor e oprimido; entre patrões e trabalhadores, entre expropriadores e expropriados. Este é o transcendental sistema de parentela atual: famoso é parente de famoso, de modo que todos querem ser parente do mais famoso, como forma de ascensão transcendental.

O coronelismo de nossa época é o fetichismo da fama gerando mais fama. Temos aí o literal círculo vicioso, viciado: um famoso se aproxima do mais famoso com o objetivo de se tornar mais famoso, constituindo, assim, a sagrada família edípica dos famosos. O programa TV Xuxa do último dia 2 de julho foi um festival de coronelismo midiático, no centro do qual a rainha dos baixinhos exalava o brilho ou a aura transcendental de quem encarna o obscurantismo pré-moderno de ser reconhecida como o ponto máximo de inflexão do famoso centrismo mundo midiático brasileiro.

Na atual época famosa centrista, o sol da transcendência é ser famoso e, no caso brasileiro, a nossa sociedade famosocêntrica é constituída através de uma trindade matriarcal ou feminista, assim definida: a mãe rainha dos famosos, a Xuxa; a filha da mãe dos famosos, Ivete Sangalo; e o espírito santo da sagrada família dos famosos, Hebe Camargo, a única que estava ausente no TV Xuxa especial 25 anos.

A vergonha de adorar o X intolerável

E assim caminha a nossa famosocêntrica humanidade midiática: o anônimo é ofuscado pelo sol da fama, onde os famosos não param de escolher o escolhido, de promover o promovido, de encher de fama o já hiperfamoso, num contexto em que a legião de famosos busca desesperadamente se aproximar da trindade matriarcal de nossa época: Xuxa, Ivete Sangalo e Hebe Camargo, pois assim enriquece os seus respectivos currículos de famosos, tal que os menos famosos que estes últimos buscam os mais famosos, num movimento fundamentado por uma estrutura piramidal, tal que o pesadelo onipresente é o de estar ou ficar próximo da base da pirâmide, onde vive a sub-raça dos anônimos.

O fetichismo, pois, de nossa época é a fama, a adoração dos famosos e o X do tabu da atual era famosocêntrica é anonimato, razão pela qual o caminho para a afirmação da imanência, hoje, passa necessariamente pela destituição do maniqueísmo entre fama e anonimato, não adorando a nada e a ninguém, principalmente aos famosos e mais principalmente ainda aos hiperfamosos. Apenas assim deixaremos de ser anônimos, quando não houver mais famosos no mundo; situação que só ocorrerá quando formos plenamente imanência, afirmativamente, alegremente, solidariamente.

Se essa utópica laica época chegar, não existirá mais puxa-saco e, então, alegria, alegria, conjuraremos a vergonha de um dia termos adorado o X intolerável da Transcendental Xuxa, nesta errante navegante Terra órfã, onde só a comum imanência nos salvará dessas trevas.

E nada mais!

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[Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor da Universidade Federal do Espírito Santo]