“Um marco regulatório é um conjunto de normas, leis e diretrizes que regulam o funcionamento dos setores nos quais agentes privados prestam serviços de utilidade pública. No Brasil, a expressão passou a ser conhecida durante as discussões da legislação criada para vários setores que passaram da esfera estatal para a iniciativa privada a partir dos anos 90 (telefonia, energia elétrica e rodovias). Para cada setor, critérios bem definidos foram estabelecidos para garantir a continuidade, a qualidade e a confiabilidade dos serviços prestados à população. A regulação em cada setor compete a uma agência independente que, idealmente, goza de condições de defender os interesses dos cidadãos, do governo e das empresas concessionárias, assim assegurando um ambiente que concilie a saúde econômico-financeira das empresas e as exigências e expectativas do mercado consumidor. Alem de determinar as regras para o funcionamento do setor, o marco regulatório contempla a fiscalização do cumprimento das normas, com auditorias técnicas e o estabelecimento de indicadores de qualidade. [1]
No setor da mídia, que depende das concessões do Estado para as emissoras de rádio e televisão, existem leis especificas para os diversos veículos, mas, quando se trata de um marco regulatório, os críticos da falta de regulamentação no setor apontam lacunas nos aspectos relacionados ao direito à comunicação em termos da democratização do acesso e do controle social dos conteúdos. Um dos principais obstáculos à criação de um consenso sobre essas questões é a oposição dos defensores do status quo ao controle social, que eles argumentam ser equivalente à censura. Para os críticos, essa posição, que é acompanhada pela insistência na autorregulação, representa um argumento pela liberdade da empresa, não da imprensa.
Quais são os aspectos apontados pelos defensores de um marco regulatório? Muitos deles se encontram em artigos da Constituição Federal que, passados 25 anos, continuam sem regulamentação. Os artigos 220 a 224, que compõem o capítulo que trata especificamente da comunicação social, estão entre os itens cuja regulamentação é mais reivindicada:
1. Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio;
2. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas, promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação, e regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;
3. Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal;
4. Para os efeitos do disposto neste capítulo, o Congresso Nacional instituirá como seu órgão auxiliar o Conselho de Comunicação Social, na forma da lei.
De acordo com Carlos José Napolitano, professor da Universidade Estadual Paulista, ‘das sete exigências constitucionais de leis regulamentadoras do capítulo da comunicação social. apenas três foram editadas [2]:
1. A Lei 9.294/96, que regula o Artigo 220, Parágrafo 4º (a propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estarão sujeita a restrições legais, nos termos do Inciso 2 do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso);
2. A Lei 10.610/2002, que trata da participação de capital estrangeiro em empresas de comunicação;
3. A Lei 8.389/91, que criou o Conselho de Comunicação Social.
Quanto à proibição dos oligopólios e monopólios, à promoção da cultura regional e ao estimulo à produção independente, os seguintes comentários caracterizam a situação atual, que tende a persistir na ausência de um marco regulatório que altere a balança de forcas que prevalece desde a implantação da Constituição. Segundo o professor Venício Lima, ‘o êxito dos interesses comerciais do setor se consolidou nas condições assimétricas em relação às concessões de outros serviços públicos que a radiodifusão tem em relação a não renovação e ao cancelamento’ [3].
Em relação à complementaridade entre o sistema privado, público e estatal, para seus defensores, a sua inclusão na Constituição ‘seria uma forma de equilibrar os já existentes sistemas privado e estatal, com notória prevalência do primeiro, e também equiparar a estes uma nova figura, o sistema público. A intenção era ter um sistema de comunicação que não estivesse a serviço nem do mercado, nem dos governos do dia’ [4]. Mas o Artigo 223 mantém-se como uma das previsões constitucionais mais polêmicas exatamente porque, como quase todos os demais artigos do capítulo da comunicação, seguem até hoje sem regulamentação. A inexistência de referência legal do que venha a ser a configuração jurídica de cada um desses sistemas levou a uma grande confusão conceitual, que ao longo dos anos afastou a possibilidade de o artigo funcionar na direção imaginada em 1988.
‘A confusão conceitual, no entanto, extrapola o texto constitucional, os debates acadêmicos e as discussões sobre uma possível regulamentação do Artigo 223, e se concretiza nas experiências de comunicação pública registradas como tal no Brasil. Em sua maioria, essas iniciativas nascem de projetos estatais, como as TVs educativas e rádios ligadas aos estados e municípios. No entanto, por questões que vão da forma de organização desses veículos às conjunturas política nacional e regional, praticamente nenhuma deixou de estar atrelada às vontades dos governos de plantão’ [4].
Quanto ao Conselho de Comunicação Social, cujas funções incluem avaliar questões ligadas à liberdade de expressão, produção e programação de emissoras de rádio e TV, além de tratar da propriedade, monopólio ou oligopólio dos meios de comunicação social e da outorga e renovação de concessão, permissão e autorização de serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens, o órgão só teve sua criação efetiva em 2004 e após o final do segundo mandato, em 2007, o Senado não nomeou mais ninguém e o órgão ficou parado até ser reativado com novas nomeações em 2012 [5].
Além dos artigos específicos do capítulo da comunicação social, no Artigo 5º, que trata dos direitos e garantias fundamentais, é assegurado ao cidadão ‘o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem’. Quando o Supremo Tribunal Federal revogou a Lei da Imprensa em 2009, por conter restrições impostas pelo regime militar, o direito de resposta ficou sem o detalhamento que a lei continha, restando só o Artigo 5º da Constituição. De acordo com a Procuradoria-Geral da República, o órgão máximo do Ministério Público Federal, sem regulamentação específica, ou seja, sem lei ordinária tratando do tema, o direito se limita apenas ao aspecto da reparação de anos à personalidade, a partir do Código Civil.
Para Deborah Duprat, vice-procuradora-geral da República, ‘pode-se considerar que o direito de resposta tem sido concebido no Brasil em termos estritamente privatísticos. Afinal, existe regulamentação infraconstitucional quanto à reparação de danos à personalidade (honra, imagem etc.) no Código Civil e na legislação especial. Porém, não há o mesmo tipo de disciplina legal no âmbito da comunicação social, para que assegure os espaços e as condições para manifestações midiáticas daqueles que, porventura, tenham seus direitos desrespeitados por esse meio’ [6].
Ainda no Artigo 54 da Constituição é proibido, aos deputados e senadores, desde sua posse, serem ‘proprietários, controladores ou diretores de empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público, ou nela exercer função remunerada’. Sem regulamentação, porém, isso não tem impedido muitos deles serem donos de empresas da mídia. Questionado sobre o Artigo 54 da Constituição, um parlamentar dono de uma emissora de rádio retrucou que conseguiu a rádio antes de se eleger. ‘Existe algo que se chama direito adquirido. Temos na Constituição um artigo que diz que promotor público não pode participar do processo político, e temos deputados que são promotores. Por quê? Porque tinham o direito antes da Constituição. Tornei-me parlamentar agora, mas jamais vou usar do meu poder para me beneficiar. Quando houver algo do meu interesse, nem participarei de votações. A comissão é suprapartidária. Estamos avançando para a democratização ainda mais do setor das comunicações. Não podemos misturar os interesses pessoais com os interesses da nação’, defende.
Para o pesquisador Venício de Lima, não é bem assim. ‘Há um impedimento legal. Isso é uma incoerência. Como o camarada que concede a concessão pode também ser o mesmo que consegue a concessão? Há uma flagrante obscenidade no ato. Isso existe por causa de uma interpretação equivocada da lei. E mesmo antes de 88 havia o Código das Comunicações, que também impedia isso’. [7]
Enfim, sem um marco regulatório ou pelo menos a criação de leis especificas nas áreas mais críticas, a configuração e ao empenho da mídia nesses aspectos, as diretrizes ficam ao critério dos concessionários, que tem ampla liberdade para interpretar o interesse público de acordo com seus próprios interesses e fazer, quando muito, o mínimo necessário para evitar a imposição de medidas mais rigorosas.
Boa Leitura!
[1] Mais informações: http://www.carlosescossia.com/2009/08/o-que-e-marco-regulatorio.html
[2] http://revistaalceu.com.puc-rio.br/media/Artigo%2015_24.pdf [3]http://www.direitoacomunicacao.org.br/content.php?option=com_content&task=view&id=4142
[4]http://www.direitoacomunicacao.org.br/content.php?option=com_content&task=view&id=4132
[5] http://www.tvt.org.br/blog/felipe-prestes-franklin-martins-e-a-regulacao-da-midia
http://conselhocurador.ebc.com.br/noticia/25-10-2012-com-reativacao-do-ccs-conselho-curador-envia-informacoes-ao-congresso-nacional
[6]http://www.direitoacomunicacao.org.br/content.php?option=com_content&task=view&id=9124
[7] http://rollingstone.uol.com.br/edicao/7/donos-de-tvs-e-radios-parlamentares-desrespeitam-a-constituicao”