“Dentre os instrumentos criados para proporcionar ao público meios de exercer o direito à voz nas atividades das organizações – empresas, órgãos públicos, etc. – que lhe fornecem bens e serviços, as ouvidorias figuram entre os principais. O termo geral adotado para designar a função que esses instrumentos desempenham nas relações entre uma organização e seus usuários é accountability (prestação de contas ou responsabilização).
Na esfera político-administrativa, a accountability refere-se à obrigação de membros de um órgão administrativo ou representativo de prestar contas a entidades controladoras ou ao seu público. Na conceituação clássica, a accountability costuma ser dimensionada em dois eixos: o vertical, que destaca o voto como a forma pelo qual o controle se exerce de baixo para cima e, na direção contrária, o controle burocrático exercido por superiores hierárquicos, e o horizontal, em que a responsabilização se realiza por meio de checks and balances (freios e contrapesos) de mútuo controle entre os Três Poderes do Estado [1].
Nas abordagens contemporâneas a respeito dos sistemas democráticos (por exemplo, a democracia direta ou participativa), aparece um terceiro eixo, o social, que integra as ações pelas quais os cidadãos cobram a responsabilização fora dos períodos eleitorais. Segundo a análise de Enrique Peruzzotti e Catalina Smulovitz no livro Controlando la Política, Ciudadanos y Medios en las Nuevas Democracias Latinoamericanas, o accountability social envolve mecanismos institucionais e não institucionais que se baseiam na ação de múltiplas associações de cidadãos, de movimentos sociais ou da mídia, com o objetivo de dar visibilidade a erros e falhas do Estado, trazer novos pontos à agenda pública ou influenciar decisões políticas [2].
Nesse contexto, a mídia ocupa uma posição dupla, porque constitui ao mesmo tempo um meio importante de fiscalização do poder e um poder por si próprio, chamado por muitos o ‘quarto poder’, e , portanto, um objeto legítimo de responsabilização perante o público. De acordo com Andreas Schedler, no texto Conceptualizing Accountability, a efetivação da prestação de contas depende da atuação de uma multiplicidade de fatores, tais como a educação da cidadania, e da implantação de uma série de mecanismos para delimitar e controlar o exercício do poder. Um dos componentes destacado por ele é a answerability (usualmente traduzida como responsibilidade), isto é, a obrigação dos governantes em responder as solicitações de informação e os questionamentos dos governados [3].
No contexto duplo do poder, a mídia, para exercer efetivamente sua função de questionar e fiscalizar os Três Poderes constitucionais – Executivo, Legislativo e Judiciário –, ela própria tem que ser questionada e fiscalizada. Para servir como fonte de informações que contribuam à educação da cidadania, ela também tem que educar o público a respeito do poder que ela própria tem e como o poder está presente nas decisões que ela toma. Para incorporar essas funções, foram criados instrumentos que o estudioso do assunto Claude Jean Bertrand chamou ‘meios de assegurar a responsabilidade social da mídia’ (Mars). Bertrand fez uma lista que conta com mais de 60 instrumentos diferentes, entre eles, as ouvidorias.
Na visão um tanto quanto idealizada do Bertrand, que vislumbra grande potencial na responsabilização social, as ouvidorias, assim como os outros instrumentos do Mars, agem principalmente no sentido de realizar a democracia participativa ou direta. Segundo ele, ‘os jornalistas são pouco numerosos e muito vulneráveis, pois são empregados pelas empresas de comunicação e, portanto, facilmente manipuláveis. Como poderiam eles recusar-se a obedecer a uma ordem do patrão? Isso somente é possível com o apoio do público, formado por milhões de eleitores e consumidores. Como obter esse apoio? Provando ao público que sua vocação é primeiramente de satisfazê-lo… Daí a importância dos Mars. Esses indicam claramente ao público que os jornalistas têm princípios e regras, que eles se preocupam em descobrir as necessidades e desejos de seus leitores/ouvintes/espectadores e, enfim, que eles estão prontos a prestar contas, a reconhecer suas faltas’ [4].
Enfim, no trabalho cotidiano da Ouvidoria da EBC de cobrar respostas dentro da empresa para atender às demandas do público, observam-se sinais pontuais do tipo de mudanças visadas por meio da atuação dos Mars: maior empatia e receptividade da parte dos gestores em relação às demandas e maior proatividade na antecipação das soluções, por exemplo. Mas isso ainda não é a regra. Para que a voz do público esteja presente de uma forma mais consistente nas decisões dos gestores, é indispensável contar com os outros dois eixos da responsabilização. Pelo eixo vertical, a probabilidade de uma mudança aumenta quando ela é reforçada por uma decisão da Diretoria Executiva da empresa e passa ser objeto de cobrança hierárquica. Pelo eixo horizontal, em que atuam as forças de controle mútuo, o papel do Conselho Curador, o órgão mais semelhante a uma ‘legislatura’ dentro da EBC, é fundamental. Nesse sentido é bom lembrar que a instituição da ouvidoria surgiu na Suécia no século 19 como adjunto do Parlamento daquele país, trazendo a voz do público dentro do poder representativo para subsidiar as atividades de legislação e fiscalização do poder administrativo. Essa ligação com o poder representativo é importante, porque, como no eixo vertical naquilo que diz respeito à atuação da Diretoria Executiva, ela proporciona uma repercussão que pode ser transformada em decisões concretas.
[1] [2] [3] Apud Fernando Oliveira Paulino, Responsibilidade Social da Mídia (tese de doutoramento), Universidade de Brasília, Brasília, 2008. http://bdtd.bce.unb.br/tedesimplificado/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=3282
[4] Prefácio à edição brasileira de O Arsenal da Democracia – Sistemas de Responsabilização da Mídia, de Claude-Jean Bertrand (trad. Maria Leonor Loureiro), Editora da Universidade do Sagrado Coração, Bauru, 2002.
http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/al050320032.htm.”