Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Suzana Singer

‘Mesmo o que deveria ser pura diversão enfurece, de tempos em tempos, os leitores. Um alvo constante de reclamações são as palavras cruzadas, publicadas diariamente.

No último dia 4, o passatempo pedia as iniciais do escritor ‘norte-americano’ Vladimir Nabokov. O advogado Luciano Amaral, 64, protestou, já que ninguém lembra do autor de ‘Lolita’ dessa forma, mas a Ilustrada respondeu que, embora ele tenha nascido em São Petersburgo, se naturalizou nos EUA em 1945.

Meses antes, Luciano tinha reclamado porque as cruzadas perguntavam sobre uma ‘famosa dupla norte-americana de comediantes dos anos 30 e 40’. A resposta apontava ‘O Gordo e o Magro’, mas Stan Laurel, o Magro, era inglês. A resposta da Redação: ‘O importante é o país onde a dupla fez fama’.

Por essa lógica, retrucou Luciano, ‘Lolita deve ser lida ao som do francês Chopin e guardada na biblioteca ao lado das obras do norte-americano Albert Einstein’.

Não são apenas imprecisões que irritam os adeptos do passatempo. Vários sentiram que aumentou o grau de dificuldade nos últimos tempos. ‘Qual é a intenção de colocar palavras como entrenó, bulboide, gadanha, antitenar [*veja significados embaixo da ilustração]? O passatempo é para o pessoal da Academia Brasileira de Letras?’, questiona o vendedor Rogério Pinheiro, 50.

O professor de direito Silvio Artur Dias da Silva, 63, usa o Houaiss e, mesmo assim, nem sempre consegue completar o desafio. ‘Em uma edição recente, havia o verbete ‘atuado’ *, que só adeptos do Candomblé sabem o que é’, reclama.

A empresa A Recreativa, que faz as palavras cruzadas da Folha, diz que a ideia é alternar graus de dificuldade para ‘estimular’ a curiosidade dos leitores. Aos domingos, os passatempos são da categoria ‘‘difícil’, porque a pessoa tem mais tempo para resolvê-los.

O segredo de um passatempo é ser instigante, sem ser obscuro, sem apelar para termos fora de uso, ensina Will Shortz, editor de palavras cruzadas do ‘New York Times’ -sim, lá existe essa função. O jornal leva o assunto a sério: toda semana, chegam de 75 a 100 sugestões de leitores, e as selecionadas passam por quatro testadores até serem publicadas. ‘Palavras cruzadas são uma das poucas coisas que ainda é melhor fazer no papel do que no on-line’, provoca Shortz.

O ASTRO

Três leitores desafiam a Folha a suspender o horóscopo, que sai na mesma página das palavras cruzadas. O professor Anderson José, 39, critica a Folha por incentivar uma ‘crendice da Idade Média’. ‘Posso confiar nas informações publicadas ali como acredito nas notícias do resto do jornal?’, pergunta.

O engenheiro Caio Brüchert, 36, não se conforma que ‘se contribua para propagar a ignorância humana’. ‘Que maravilha se um jornal de peso como a Folha decidisse romper essa tradição terrível!’

Para o neurocirurgião Alessandro Blassioli, 45, o jornal ‘alimenta ilusões’ . ‘Se não suspender a coluna, a Folha deveria anexar uma nota no rodapé do tipo: ‘Este jornal não compartilha da ideia de que horóscopo possa determinar o futuro’. É como cigarro: todos têm direito de fumar, mas quem vende tem que dizer que faz mal.’

Para se ter uma noção da popularidade do zodíaco, a Folha.com. registra 8 milhões de page views (cliques) todo mês no horóscopo, que é bem mais completo do que o impresso. No site, dá para testar a compatibilidade com o signo do sexo oposto, saber o que os astros apontam para o Brasil neste ano e entender como é uma criança capricorniana. É o sexto canal de maior audiência.

‘O horóscopo pode não ter validação científica, mas é um fato cultural inconteste da nossa sociedade’, diz a Redação.

Já que a previsão para uma libriana como eu em 2011 é que, ‘consciente do seu papel, discriminará muito bem o que é certo e o que é errado’, vou comprar a briga dos ‘três mosqueteiros’ acima: um jornal que preza a racionalidade e a ciência deveria abrir mão da astrologia.’