“A tortura voltou à pauta da Folha nos últimos dias por dois mensageiros completamente diferentes: um coronel reformado do Exército e um compositor preso nos anos 80 por posse de drogas.
A primeira porta ao passado reabriu quando a nobre seção ‘Tendências/Debates’ deu espaço para que Carlos Alberto Brilhante Ustra tentasse desconstruir um artigo de memórias escrito pelo economista Persio Arida para a revista ‘Piauí’.
Em ‘O delírio de Persio Arida’ (27/5), Ustra afirma que o ex-preso político não foi transferido para o Rio, não viveu vários fatos que ele descreve e, conclui-se, não deve ter sido torturado.
O economista respondeu seis dias depois com ‘O coronel e a tortura’, na mesma página 3, e terminava dando o troco: ‘Eu não suportaria a vergonha de ter comandado uma casa de torturas’.
Para alguns leitores, é inconcebível publicar textos de alguém acusado de praticar ou acobertar um crime como a tortura. ‘A Folha mais uma vez dá voz aos que estiveram em evidência no período mais trágico da nossa história, em vez de deixá-los curtir a solidão e a vergonha dos derrotados moralmente e condenados pela opinião pública mundial’, escreveu o administrador Maurice Politi, 62, de São Paulo.
No Twitter, Ustra já virou ‘colunista da Folha’ e o seu artigo é mais um argumento para os que querem pregar a pecha de ‘defensor da ditadura’ no jornal. Um internauta provocou: ‘Qual será o próximo? O goleiro Bruno do Flamengo? Guilherme de Pádua? Nardoni?’.
Apenas um remetente, o capitão-de-mar-e-guerra reformado Paulo Marcos Gomes Lustoza, do Rio de Janeiro, defendeu Ustra: ‘Certos leitores não admitem a Folha publicar o contraditório’; ‘…(por eles), só conheceríamos a opinião dos que lutaram contra o regime militar, mas jamais saberíamos se a luta armada queria substituir o nosso capitalismo pelo socialismo cubano, chinês, albanês ou o comunismo marxista-leninista’.
Para a decepção de muitos, defendo a iniciativa, condizente com o pluralismo expresso no projeto editorial da Folha, de dar visibilidade à versão do ex-comandante do DOI-Codi, mesmo sabendo-se que funcionava ali uma central de tortura.
E tendo consciência também que, se estivéssemos nos anos 70, ele não defenderia o meu direito de expressão. Na ditadura, vozes dissonantes eram caladas. Censurar é sempre a pior saída.
A segunda porta para um túnel do tempo foi escancarada por Lobão. Em um festival em São Francisco Xavier (SP), no último dia 29, o músico defendeu que, se ‘os caras que sequestravam’ foram anistiados, por que não fazer o mesmo com os que ‘arrancavam umas unhazinhas nos calabouços’?.
Nesse caso, a Folha errou, porque deixou a notícia passar no meio das pernas. A reportagem da Ilustrada destacava as críticas de Lobão a Chico Buarque e João Gilberto, que não surpreendem ninguém, e deixava a fala política do artista para o último parágrafo.
O erro foi parcialmente remediado pelo colunista Fernando de Barros e Silva, que resgatou a frase correta do músico, deu-lhe o devido destaque e a criticou.
Foi o suficiente para atiçar a fúria de Lobão, que acusa a Folha de usar ‘um detalhe’ numa palestra de duas horas para tentar transformá-lo em uma caricatura.
‘Esses caras não perceberam que me tratar dessa forma é inócuo, datado, anacrônico e muito cafona. Tô cagando um balde pra matéria’, tuitou, esquecendo-se da tal ‘élégance’.
Lobão está errado. Aquilo não foi um detalhe. Ele falou bastante sobre o assunto (‘Por que Che Guevara, que executava camponeses, é mais humano que um torturador?’), provocou até onde deu (‘Quem vai comer alguém no colégio dizendo que é fã do Costa e Silva? Tem que gostar do Che’) e agora precisa encarar a repercussão. Como diz uma de suas belas canções: consciente, inconsciente, desatino.”