Friday, 29 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Suzana Singer

‘‘Recebe-se com estranheza a notícia.’ Começava assim o editorial ‘Alerta na USP’, publicado em 16 de março, que comentava a manchete da Folha de seis dias antes: um quarto dos estudantes aprovados na USP não se matricula.

É para estranhar mesmo. Quanta gente esquisita passa por uma prova duríssima e depois esnoba a melhor universidade do Brasil, mesmo sendo gratuita!

A reportagem da Folha trazia várias hipóteses para o fenômeno: aumento de vagas nas universidades federais, bolsas para alunos carentes estudarem em locais privados mais perto de onde moram, provas de avaliação unificadas.

Nada disso descartaria a possibilidade de a USP estar passando por uma fase de desprestígio. O editorial, mais explícito, dizia que há um ‘processo de acomodação e falta de criatividade’ na universidade, que corre o ‘risco da estagnação’.

No dia seguinte à manchete, a Fuvest soltou uma nota, afirmando que o percentual correto de desistentes é 16,3% e não 24%. A diferença está no número de estudantes convocados que não completaram o segundo grau (os ‘treineiros’ que não se inscreveram nessa categoria) e nos aprovados que aguardam remanejamento para outros cursos na própria USP.

Caterina Lure Nema Paiva, 16, faz parte desses vestibulandos que confundiram as contas da Folha. Aluna do Colégio Bandeirantes, ela concorreu a uma vaga de Farmácia e Bioquímica para ‘ter a experiência’. ‘Eu passei como treineira já no primeiro ano do ensino médio. Como treineiro, qualquer um passa’, diz Caterina.

O engano foi discutido em uma reunião da Fuvest com os jornalistas da Folha e, depois de alguns vaivéns, o jornal publicou uma correção travestida de reportagem. Na quarta-feira passada, saiu em página interna de Cotidiano: ‘‘Fuvest convocou 479 alunos sem ensino médio para a USP’.

Embora reconhecesse que os ‘‘treineiros desobedientes’ inflaram os dados publicados, o tom não era de retificação, mas de denúncia contra a Fuvest, que chama para matrícula quem não deveria, e contra a pró-reitora de graduação, que analisou os dados a pedido da reportagem sem perceber que havia erro -na quinta-feira, Telma Zorn publicou um artigo em defesa da universidade em ‘‘Tendências/ Debates’.

Não deixa de ser expressivo que 16% dos aprovados na USP desistam de cursá-la. É um recorde -em 2005, eram 9,9%-, mas o número correto não seguraria uma manchete. O jornal escamoteou o ‘Erramos’, em vez de seguir o ‘Manual de Redação’: ‘‘A Folha retifica, sem eufemismos, os erros que comete. A retificação deve ser publicada assim que a falha for constatada, mesmo que não haja pedido externo à Redação. As correções são feitas na seção ‘Erramos’, ou, em casos de gravidade excepcional, na Primeira Página ou na capa de cadernos, aí também acompanhadas do título ‘Erramos’’.

Para o leitor não importa que a incorreção não tenha sido culpa dos repórteres -neste caso, com os dados em mãos, eles os levaram a uma autoridade da universidade para analisá-los. O que interessa é que uma manchete estava errada, que a correção demorou a sair (13 dias é muito para um jornal diário) e não houve destaque suficiente para o novo dado.

Mas, se há responsabilidade da Redação, não deixa de ser curioso o comportamento da universidade. Diante de notícia tão bombástica, que gerou inclusive um artigo do professor José de Souza Martins no ‘‘Estado de S. Paulo’ (‘‘Obrigado, mas preferi outra’), seria natural uma reação mais contundente.

A razão está, provavelmente, no passado. As relações da Folha com a USP não são fluidas desde a marcante ‘‘lista dos improdutivos’, a relação divulgada em 1988 com nomes de docentes que não teriam publicado nada em 1985-86.

A intelectualidade uspiana, que formava uma das bases do leitorado do jornal, sentiu-se traída, declarou guerra à Folha e, desde então, há uma desconfiança permanente entre as duas instituições.

Sempre que possível, a Folha fustiga a universidade, que se arrepia e se enrola antes de reagir. Seria saudável que esse relacionamento melhorasse -sem que o maior jornal do país tire o olho crítico da mais prestigiada universidade, que vive de dinheiro público.’