MATÉRIAS AVULSAS
Tiago Dória
Como o Radiohead e o WSJ entraram na Era do desmanche
‘Além de conservadoras, no sentido de serem acostumadas com as margens de lucro que sempre tiveram garantidas por diversas décadas e de trabalharem maciçamente em cima da força do hábito de seus consumidores (comprar/ler jornal todo dia), o que une a já antiga indústria musical à indústria de jornais é que ambas foram afetadas pela Era do desmanche de conteúdo.
Dois fatos recentes são a prova disso.
Primeiro, a banda Radiohead anunciou que não vai mais lançar álbuns, mas músicas separadas. Assim que ficarem prontas, serão disponibilizadas na web. Ou seja, a banda não pensa mais em lançar pacotes de música (álbuns), mas músicas avulsas.. Desmanchou-se o pacote de música. Desde meados de 2003, a loja online de música iTunes é o lado mais comercial dessa mentalidade ao tornar simples comprar música a música ao invés de um álbum inteiro.
Isso de desmanche, desmantelamento de pacotes de conteúdo, não é exclusivo da indústria musical.
Segundo fato. Em seu novo modelo pago, o Wall Street Journal anunciou recentemente planos de vender acesso a matérias avulsas. Ou seja, você não vai pagar pelo pacote, o jornal inteiro, o site inteiro, mas por matéria, apenas pela parte que lhe interessa, aquilo que quer ler.
O que é até bom. É uma dinâmica diferente da versão impressa, na qual você é obrigado a levar para casa cadernos e matérias que não interessam. Isso acontece por que você paga pelo pacote de notícias, o jornal, e não por matéria. No impresso, o todo, que vale mais que a soma de suas partes, é o que importa.
Aliás, acredito que um dos maiores desafios na gestão e no modelo de negócios da indústria de jornais, proporcionado pela digitalização de conteúdos nos anos 80 e a posterior distribuição desse conteúdo com a internet nos anos 90, é pensar o jornal não como um pacote, mas em partes.
No ambiente digital, o jornal como um todo é o que menos interessa, as partes é que contam. No novo modelo do Wall Street Journal cada matéria se torna um produto separado. Isso muda não somente a dinâmica com anunciantes, mas a gestão da redação, cada matéria tem que ser um hit. Igual ao que está acontecendo na área de música com a venda de músicas avulsas, o músico, a banda fica na obrigação de criar hits.
Quem trabalha com blogs há algum tempo (tem um trabalho consistente e quase diário) sabe que pensar desse jeito não é tão estranho. Pela minha experiência, percebo que autores de blogs, jornalistas ou não, pensam assim. Cada post deve ser um hit.
Deve-se produzir um post como se ele fosse um ‘único produto’, muitas pessoas só vão visitar aquele post ou conhecer o blog por meio dele, como se não existisse nada antes nem depois (esse assunto é comentado no livro Blogging Heroes, que reúne entrevistas com os mais importantes autores de blogs em inglês).
Voltando para mais perto da questão do jornal, se a gente pudesse montar hoje em dia o jornal que realmente queremos, certamente seria um ‘frankenstein’, com um colunista de um, o blogueiro de outro, a parte de esportes de mais um e a parte de internacional de um jornal lá de não sei onde.
Na prática, no ambiente digital, já fazemos isso. Lemos sobre tecnologia em um blog, sobre esportes em um portal, sobre política no outro e damos uma olhada nas informações sobre trânsito em mais outro, que é concorrente dos dois primeiros. Enfim, já trabalhamos com o desmanche de conteúdo há muito tempo.
E quem trabalha com TV já deve ter percebido que isso não acontece somente na indústria musical e de jornais. Cada vez mais os programas de TV são divididos e conceituados em quadros pequenos. E o programa, quando publicado na web, não é disponibilizado apenas na íntegra, mas em quadros, fragmentado, como um disco que foi colocado música por música na web.
Se isso da Era do desmanche de pacotes de conteúdo é bom? Como sempre, acredito que a verdade sobre esses novos fenômenos, que muitas vezes em essência não são tão novos (jornalismo cidadão, mídias sociais, blogs etc.), esteja no meio termo. Por um lado, o desmantelamento facilita a personalização de conteúdos e o funcionamento de filtros (sejam eles humanos ou robôs). Não precisamos gastar dinheiro nem tempo com o que não nos interessa, músicas chatas, matérias que não interessam e quadros que não gostamos em programas de TV.
Mas por outro lado podemos ficar acostumados a ouvir somente o que gostamos (posso ouvir só a música que gostei), a ler somente o que ratifica a nossa visão de mundo (leio apenas matérias avulsas), e isso faz fechar nossa visão de mundo. Lemos, ouvimos e assistimos apenas àquilo que reforça o que já acreditamos. Polariza um pouco as coisas.
E um lado bom dos pacotes inteiros de conteúdo é esse, junto com o conteúdo que interessa, ele traz muito ruído, mas também aquela visão de mundo discordante, aquele conteúdo que destoa do que gostamos, e que é tão necessário para a nossa formação, o contraditório, a diversidade.’
COMPORTAMENTO
Tiago Dória
Muito além dos ‘visionários’ da eletricidade e da internet
‘Nos finais de semana, a editoria de tecnologia do NYTimes tem o costume de requentar reportagens antigas. Algo meio chato para quem é leitor assíduo. Outro dia fizeram uma matéria sobre a diminuição da quantidade de posts em blogs, que era relacionada a um estudo do Technorati do começo de 2008, que já foi tema do jornal várias vezes.
Desta vez, foi um pouco diferente. Publicaram um interessante artigo sobre a mudança de hábitos que a internet proporciona no café da manhã. Ao acordar, cada vez mais americanos vão direto para os seus computadores ou celulares para checar emails ou ler informações. Antes mesmo de escovar os dentes ou tomar o café da manhã e, às vezes, na própria cama com o laptop.
É uma sutil mudança de comportamento e é lógico que não se aplica a qualquer pessoa. Existe gente que não tem nem nunca terá esse hábito.
Achei interessante essa matéria por que estou lendo o livro The Big Switch (A Grande Mudança, em português), de Nicholas Carr, para mim, atualmente um dos escritores mais lúcidos em relação ao que estamos passando em vários campos da sociedade.
Em um trecho do livro, Carr conta que, semelhante à internet, quando a energia elétrica foi inventada, surgiram diversos gurus com teorias utópicas e previsões mirabolantes sobre a eletricidade. No final, pouco souberam prever o que realmente iria acontecer.
Carr conta o caso do ferro elétrico que surgiu graças à eletricidade. O aparelho mudou o comportamento e as expectativas sociais sobre as roupas, algo que nenhum visionário tinha imaginado. Antes do ferro elétrico, rugas e amassados eram considerados normais nas roupas na medida em que era bem trabalhoso passar roupa em casa, os ferros eram à carvão. Depois, rugas em roupas viraram sinônimo de desleixo. Algo que perdura até hoje.
E outra. Com a eletricidade, a linha de montagem das fábricas de carros mudou, foi possível produzir mais carros e de forma mais barata.. Como consequência, mais pessoas compraram veículos e com a facilidade de transporte resolveram sair dos grandes centros para morar em bairros afastados. Uma vez mais, ninguém havia previsto que a eletricidade promoveria o surgimento e o crescimento dos bairros afastados nas cidades.
Enfim, o que Carr mostra é que quase sempre as tecnologias fazem surgir ‘visionários’ e teorias mirabolantes que, no final das contas, pouco conseguem imaginar as mudanças que essas tecnologias realmente proporcionarão ou estão proporcionando. Mudanças sutis, que são mais duradouras e que fazem parte do nosso cotidiano. Lembrei disso ao ler a matéria do NYTimes.’
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