Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

TV paga e diversidade

No extraordinário Pele Negra, Máscaras Brancas (1952), o principal pensador da descolonização do século 20, Frantz Fanon, argumenta que, diante de uma civilização profundamente racista – como a nossa, porque colonizada por brancos –, resta ou tem restado ao negro a adoção de uma ou mais estratégias de inserção no processo geral de branqueamento que têm sido, para os oprimidos, as diferentes e genocidas cruzadas de ocidentalização do mundo nos últimos quinhentos anos.

Chamo, em diálogo com o martiniquense Frantz Fanon, de processo geral de branqueamento a um leque amplo e aberto de práticas civilizacionais, usualmente agitado por todos nós, como colonizada estratégia de produção do artificial vento que pode nos garantir a ascensão e o prestígio sociais. Ser negro ou mestiço e casar com uma pessoa mais branca constitui uma possibilidade concreta de branqueamento, assim como a busca de um poder simbólico, como o de falar uma língua estrangeira, a do colonizador branco de plantão, assim como a ascensão escolar, tanto mais valorizada, como processo geral de branqueamento, quanto mais próxima do colonizador estiver, razão pela qual estudar no país do colonizador dá mais prestígio social que no seu próprio país colonizado.

Existe, pois, uma infinidade de práticas culturais de branqueamento no mundo todo, a maioria das quais não exporei aqui em função dos objetivos deste artigo. Convido, no entanto, os leitores prováveis e improváveis deste texto a irem direto à fonte, lendo esta singular obra, Pele Negra, Máscaras Brancas, cuja leitura certamente será um divisor de águas, tal a densidade e a constelação de experiências cotidianas de branqueamento que ora protagonizamos, ora presenciamos, mostradas, sem vesgo acadêmico algum, pelo psiquiatra Frantz Fanon.

Os males causados pelo dinheiro

E, por falar em objetivos, escrevo este artigo para analisar o seguinte argumento: o processo geral de branqueamento é genético porque visa a produzir filhos mais brancos, mas também é cultural, mas também é econômico, mas também é epistemológico, razão pela qual é geral e nos toma a todos, inevitavelmente. Quer queiramos ou não, no racista Ocidente, ascensão social é branqueamento.

A única forma de descolonizarmo-nos, a nós e ao mundo, por consequência, é trabalhar, coletivamente, para a invenção e constituição de uma sociedade humana em que a ascensão econômica, cultural, étnica, sexual, de uns sobre os outros, não seja nem os principais objetivos, nem os mínimos, perseguidos “inocentemente” por todos nós, como ocorre no interior da sociedade capitalista, que está intrinsecamente marcada e demarcada pelo que chamo de metafísica da ascensão porque todo desejo socialmente orientado, no capitalismo, está fundado e afundado no delírio da ascensão pessoal-social, sendo que o dinheiro é a divisa mediadora de todas elas, as ascensões, porque efetivamente é através dele que compramos ascensão social.

É por isso que, como dizia Marx, o dinheiro não traz em si as marcas do processo econômico, de exploração, do pão que compramos diariamente porque ele deve abstrair o mundo concreto, de tal sorte a transformar magicamente o movimento de compra e venda em indiferença e ignorância, em relação ao agregado de sofrimento e violência que subjaz toda mercadoria, logo todo dinheiro, como mercadoria das mercadorias ou o fetiche numeral delas.

Imaginemos, a propósito, se desenhássemos ou disponibilizássemos, em nossas moedas, tal como fazemos com o cigarro, imagens dos inomináveis males e sofrimentos causados pelo e para o dinheiro. Imaginemos, por consequência, quais imagens deveriam estar coladas ao dólar, a moeda internacional. Nossa prudente hipocrisia jamais permitiria tal revolucionária sandice.

As classes sociais reais e imaginárias

Em diálogo com Fanon, argumento que existe, em nossa atual civilização, o que é possível designar como processo geral entre classes pobres, máscaras ricas, processo que é o principal objetivo de branqueamento intrínseco de nosso modelo civilizacional, porque de nada adianta ter uma pele mais branca se isso não significa ou redunda em poder econômico, em, vale dizer, posse daquilo que garantirá de fato a compra de branqueamento e/ou ascensão social: o dinheiro.

Sem dinheiro, todo branco, em maior ou menor medida, é negro e, por outro lado, com o dinheiro, todo negro, em maior ou menor medida, é branco. Esse movimento, inversamente proporcional, é inevitável no interior do capitalismo, em função da relação naturalizada entre ascensão social e branqueamento étnico-cultural, como passaporte para acumular mais ascensão social e, por extensão, mais branqueamento.

Eis aí a moeda do mundo ocidentalizado: sua cara, branqueamento; sua coroa, ascensão social, com a observação de que, nesse contexto, não existe sorte porque não basta lançar a moeda para o alto e dizer “cara ou coroa”, de vez que um lado sempre dependerá de outro, como nossa principal moeda corrente de incorporação de poder social. Por outro lado, existe, na atualidade, o que podemos chamar de branqueamento difuso, que é este através do qual uma pessoa branca, sobretudo em ambientes “esclarecidos”, tende a ser vista com desconfiança, como se fosse racista e colonizadora por natureza. É por isso, se é para medir, que o principal branqueamento, como processo de ascensão, é econômico, porque o poder econômico é a própria ascensão e branqueamento misticamente conjugados.

É nesse contexto que imagino ser possível analisar a relação entre TVs pagas e TVs abertas, no Brasil e no mundo todo, como moeda corrente – e aqui a sorte de cada qual está lançada – que separa classes sociais reais e imaginárias, num movimento circunscrito na proporcionalidade invertida, a que chamei acima, parafraseando Fanon, de classes pobres, máscaras ricas.

O principal suporte do capitalismo

Ter um pacote de TV paga é uma forma de mascaramento econômico-social, logo de branqueamento, logo de ascensão social, logo de mascaramento de classe, de rico. Tudo ao mesmo tempo, agora, como parte – e aqui novamente a sorte nunca está lançada – de uma sociedade que compra a mentira de que a TV paga traz mais acesso à informação; mentira que por si mesma é inevitavelmente comprada por quem acredita ascender socialmente, comprando “informação/entretenimento de qualidade”, razão pela qual acredita embranquecer-se, de vez que ascensão social é branqueamento, inevitavelmente, por compor o quadro trágico de dois mundos, o dos ascendidos, como privilegiados; e o dos descendidos, como desprivilegiados, num pano de fundo histórico em que ascensão social é inscrição de si no universo material e simbólico desenhado pelos brancos colonizadores, para os brancos colonizadores.

Se, por sua vez, a questão da quantidade de canais de qualidade é o principal motivo publicitariamente alegado para a compra de um pacote de TV paga, o que precisa ser analisado é se, efetivamente, existe mais qualidade na TV paga, como horizonte de escolha, ao digitalizarmos o zapping do controle remoto, estando de posse desse ou daquele pacote, que é tanto mais caro quanto mais canais incorporam.

De imediato, uma evidência emerge: o privilégio de escolha diante de uma quantidade enorme de opções. Partimos da ilusão de que mais quantidade significa mais possibilidade de acesso à qualidade, ignorando que, antes de tudo, TV paga/ fechada – a aberta também – é mercadoria estratégica, seja porque ainda é o principal veículo para vender as outras mercadorias, seja porque, antes de tudo, é, por excelência, em sua pseudo-diversidade, o principal suporte publicitário do capitalismo, cuja estratégia pós-moderna é exatamente a de nos vender – e o diabo é que compramos – a ilusão de que temos acesso à diversidade de opções, razão pela qual logo somos melhores, mais brancos, para comprar ascensão social; logo, para comprar o próprio capitalismo, pois é isto que compramos, ao comprar: o capitalismo.

O epicentro da diversidade e da qualidade

É por isso que compartilho com o também psiquiatra francês Félix Guattari quando dizia que as TVs pagas constituem uma diversidade do mesmo ou do uno porque todas elas nascem do capitalismo, são o capitalismo, alimentam e retroalimentam o capitalismo, além de serem uma caixa de ressonância da ilusão de que o capitalismo é a própria diversidade de escolha, enquanto sabemos ou deveríamos saber que ele é simplesmente um sistema econômico baseado na exploração/extorsão do trabalho coletivo, logo na própria falta de diversidade, que só aparece, em seu interior, como farsa de diversidade, consumida e cultivada por quem está, acredita ou deseja estar socialmente ascendido/embranquecido, uma vez que o acesso privilegiado à diversidade é fundamentalmente vendido como passaporte para a ascensão social porque supomos obter informação e ter acesso a artefatos culturais excluídos à maioria das pessoas, em relação às quais estamos ou acreditamos estar mais ascendidos.

E como vivemos sob o signo de um processo geral de ascensão e branqueamento sociais, carimbamos, a partir de nossos poderes de ascendidos, como mais importante, mais qualificado, mais complexo, mais diverso e rigoroso, precisamente aquilo que nos faz ou julgamos nos fazer ascender, razão pela qual achamos que a informação e a programação cultural desse e daquele canal privado – Globo News, por exemplo –, é mais verdadeira, rigorosa, exclusiva do que aquelas outras a que temos acesso através da TV privada, as quais entram na categoria de informação e programação cultural de descendidos não qualificados.

A fim de manter esse sistema de diversidade de escolhas exclusivo a poucos, como o é o das TVs pagas, é evidente que estas transmitirão filmes, realizarão entrevistas e apresentarão uma diversidade de opiniões que não encontramos na TV aberta, pois, do contrário, não teriam a mínima chance de sustentar a ilusão de que são o epicentro da diversidade e da qualidade.

Mudar para não mudar

Por outro lado, por mais interessantes que sejam os filmes, por mais instigantes as entrevistas e por mais sutis e complexos que sejam os enfoques disponibilizados, a programação da TV paga nunca colocará em xeque o próprio sistema que a mantém e pelo qual ela existe: o capitalismo, sendo esta a mais singela razão por que a diversidade é a do mesmo, é a do uno, é a do poder econômico, enfim, é a da divisão social do trabalho.

A suposta diversidade, portanto, da TV paga, não apenas reflete a divisão social do trabalho como antes de tudo é a concreção da divisão da ascensão social, a qual deve existir para que não venhamos construir um mundo em que a verdadeira diversidade, a mais ética, revolucionária, vital, diversa, é aquela a partir da qual escolhemos não a nossa ascensão social particular, ao acessá-la e usufruí-la, mas o comum direito de produzirmos livremente as nossas próprias programações, sem ter que pagar, vender; sem ter que beneficiar uns, em detrimento de outros.

Aí, sim, já não estaremos no capitalismo, mas na comum diversidade de nós mesmos, desejando diversamente, sem contradição, hipocrisia e privilégio, o comum direito de todos sermos diversos; sem divisão de castas, na qual reina a comprada e usurpada falta de diversidade, travestida em farsa de multiplicidade de escolhas do mesmo.

Mudar de canal para não mudar de programação e de autoprogramação é o mesmo, assim, que mudar para não mudar.

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[Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor da Universidade Federal do Espírito]