Folha de S. Paulo, 23/4 Lucas Ferraz e Paulo Werneck, Buenos Aires Vargas Llosa provoca argentinos em feira Um peixe na água: o título do livro de memórias do Prêmio Nobel de Literatura em 2010, o peruano Mario Vargas Llosa, define com precisão sua conferência de abertura na Feira do Livro de Buenos Aires, na quinta-feira. A polêmica começou quando o presidente da Biblioteca Nacional argentina, Horacio González, criticou a homenagem a um liberal convicto no maior evento literário do país. Sua participação só foi assegurada após a intercessão da presidente Cristina Kirchner. A Argentina se prepara para eleições presidenciais, em 23 de outubro, em meio a acirradas batalhas culturais. Tão elegante quanto mordaz, Llosa agradeceu: ‘Agradeço a ela e espero que esse ato em favor da liberdade de expressão e da liberdade na Argentina contagie todos os seus partidários e guie sua própria conduta’. Sedutor, Llosa dissolveu as expectativas de uma participação explosiva recapitulando sua biografia de menino criado em Bogotá até receber o Nobel em 2010. Não deixou, porém, de fazer críticas frontais -não ao governo kirchnerista, mas à história política local. ‘O que aconteceu com este país?’, perguntou a uma plateia que o ouvia muda. ‘No começo do século 20, a Argentina era um país de primeiro mundo, enquanto dois terços da Europa eram de terceiro mundo.’ E indagou por que o país ‘que todos invejávamos’ perdeu ‘oportunidades incríveis’, cometeu ‘erros políticos garrafais’ e entrou em ‘crise quase permanente’. Quando o mediador mencionou o elo ideológico do liberalismo com a ditadura militar (1976-1983), que deixou um saldo de 30 mil mortos e desaparecidos, o escritor o cortou afirmando que ‘associar o liberalismo a uma ditadura é uma obscenidade’. Orgulhoso de seu cosmopolitismo, Llosa relembrou as cidades em que morou: da Paris dos anos 60, que ‘ajudou a criar o mito da Revolução Cubana como algo sadio’, à Madri da década de 80, a ‘capital-sacristia do mundo’ convertida em ‘capital erótica da Europa’. Também recordou a Londres dos anos 70, ‘capital de uma nova sensibilidade’ (com a cultura das drogas, da liberdade sexual e da filosofia oriental) e relembrou os anos de jornalismo em Lima. Comentou ainda a experiência de receber o mais prestigioso prêmio literário mundial: ‘Um Nobel tem uma obrigação enorme: não deixar converter-se em uma estátua’.