Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Vera Guimarães Martins

O que se passa na cabeça de alguém que decide perpetrar uma frase grosseira no obituário de uma assistente social de 87 anos?

Por quais razões alguém consideraria, já nem digo ético, mas lícito e válido ocultar um insulto num texto concebido para prestar a última homenagem pública a alguém que morreu recentemente, cuja família vive momentos de perda e de luto?

É o que eu gostaria de ter perguntado ao ex-repórter Pedro Ivo Tomé, caso ele tivesse concordado em falar comigo sobre o acróstico “chupa Folha”, formado pela primeira letra de cada parágrafo do último obituário que escreveu para este jornal. Tomé foi procurado várias vezes, mas preferiu sair pela tangente.

Resumo para quem não leu sobre o caso: o acróstico saiu publicado na última segunda (13) no caderno “Cotidiano”. Seu autor, advogado por formação, trabalhava no jornal desde 2012 e, nos últimos dois meses, havia assumido a seção do obituário, que, todos os dias, relata em poucas linhas a história de vida de alguém que morreu recentemente.

Há cerca de duas semanas, Tomé pediu demissão e disse que pretendia retomar a carreira original. Deixou alguns obituários prontos, o último deles com o acróstico, que passou despercebido e foi publicado.

Nada mais natural: 1) o repórter contava com a confiança de seus editores e, portanto, da empresa; 2) sua saída foi amistosa, sem nenhuma insatisfação ou frustração aparentes e 3) quem procuraria pegadinhas em jornal se não soubesse de antemão que alguém as colocou ali?

Dois dias depois da publicação, a revelação da duvidosa façanha se espalhou pela internet, não se sabe se vazada pelo próprio autor ou por algum amigo. Fez a festa em blogs voltados para jornalistas, que descreveram a atitude como “brincadeirinha”, “saída em grande estilo”, “criativa”, “original”, “inusitada”.

Recurso poético do século 16, o acróstico não é original ou criativo nem para ocultar um insulto. O caso mais recente de que me lembro é de outubro de 2009, quando o então governador Arnold Schwarzenegger enviou à Assembleia Legislativa da Califórnia uma carta em que as primeiras letras de cada linha formavam a frase “fuck you”.

O mais surpreendente (ao menos para mim) é que, nas primeiras horas, a atitude só ganhou elogios e curtidas. Nenhuma menção à falta de ética jornalística, ao desrespeito aos leitores e à personagem, à quebra de confiança profissional.

Sumido desde então, Tomé me enviou uma mensagem na quinta (16) à noite. Nela não fala sobre o acróstico ou suas razões e diz lamentar que seu texto tenha sido interpretado como ofensivo. “Optei por sair do jornal, onde aprendi muito, tive excelentes editores e fiz grandes amigos, para buscar novos desafios.”

Sugiro um desafio para começar, Tomé: responda por quê.

Endosso aqui o pedido de desculpas que a direção do jornal enviou à família da personagem e reproduzo parte da nota oficial divulgada:

“A Folha condena veementemente a atitude antiprofissional de Pedro Ivo Tomé. Ao usar uma reportagem para nela esconder uma mensagem ofensiva, ele foi irresponsável e antiético. Além disso, desrespeitou os leitores da Folha e os familiares da pessoa falecida que era personagem do texto. O jornal estuda ações legais que tomará contra o ex-funcionário.”