A Folha trouxe nesta semana um bom exemplo de como desperdiçar uma ótima pauta, deixando que um assunto de amplo alcance e com alto teor polêmico fosse desidratado por um somatório de enfoque equivocado com apuração anêmica.
Reportagem publicada em “Cotidiano” no último dia 10 revelou que cresce no país o número de escolas básicas públicas administradas pela Polícia Militar; já são 93 unidades em 18 Estados, com previsão de chegar a 109 até o fim do ano. No último Enem, colégios da PM ficaram em primeiro lugar nas redes públicas de nove Estados (http://folha.com/no1666631 ).
O jornal parece não se ter dado conta do significado da militarização de escolas públicas como política educacional de governos estaduais. A reportagem saiu na segunda-feira e em página interna. A notícia do bom desempenho no exame só aparecia no sétimo parágrafo.
O início do texto foi dedicado às regras disciplinares em Goiás, Estado que já tem 26 colégios do gênero e prepara outros 24: o aluno é obrigado a usar farda, cortar o cabelo à escovinha e prestar continência; não pode mascar chiclete, usar óculos esdrúxulos, espalhar boatos, dar beijo ou envolver-se em rixa. As desobediências somam pontos e podem terminar em expulsão.
Guardadas as devidas especificidades, não faltam escolas privadas que adotam manuais de conduta severos e pouco palatáveis aos pais mais liberais. Elas são, por outro lado, a opção de famílias que preferem educar seus filhos com maior rigidez disciplinar. Quando a questão é do domínio privado, cada qual com suas escolhas, como escreveu na quarta (12) o colunista Hélio Schwartsman, cuja leitura recomendo (http://folha.com/no1667292).
A esfera pública transcende esse escopo e exigia uma abordagem mais institucional, mas o jornal não ouviu nenhum dos atores políticos envolvidos: governos estaduais, secretários de Educação, representantes do MEC e de órgãos que definem as diretrizes do ensino público.
Segundo a reportagem, na semana passada, oito colégios goianos voltaram das férias no molde militar, elevando para 26 o número de escolas dirigidas pela PM naquele Estado -outras 24 devem surgir até o fim do ano. Em Minas Gerais, são 22 unidades, duas delas instaladas neste ano; na Bahia, 13 colégios.
Suspeito que pouca gente conhecesse a dimensão do fenômeno; era necessário explicar sua origem e evolução. Esses colégios surgiram em áreas violentas? As notas melhoraram de modo geral, ou os nove do Enem são pontos fora da curva?
O jornal não informou, assim como não forneceu dados sobre carga horária, método de ensino, grade curricular, políticas de reforço. Sem eles, corre-se o risco de atribuir o bom desempenho à linha dura intramuros. É possível que, em certa medida, seja: o rigor militar afasta, por expulsão ou desistência, os alunos menos afeitos a regras rígidas.
Descrever o cenário completo era mais relevante do que o falso debate encenado em duas entrevistas que acompanhavam o material. A favor dos colégios, declara o comandante de ensino da PM goiana: “O trabalho [dessas escolas] é também preventivo. O aluno terá valores sedimentados. Ou vira cliente da PM depois”. Contra eles, diz uma professora de educação da USP: “Esse apelo [dos pais que querem os colégios] acompanha o quadro de grande retrocesso político da sociedade brasileira, marcado pela investida contra direitos sociais e pelo recrudescimento da discriminação”.