Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Vera Guimarães Martins

Por dever de ofício, consulto quatro jornais por dia, noves fora outras leituras, mas até a última quinta (27) ignorava a existência de Letícia Vieira Hillebrand da Silva, 15 anos, a décima nona vítima das chacinas de Osasco e Barueri. Sua vida curta e sua morte estúpida foram uma surpresa que pareceu brotar do nada no noticiário.

O desconhecimento não foi vacilo: até então a adolescente estava embutida no bloco dos “seis feridos”, termo repetido burocraticamente em todos os textos desde o dia 13, sempre sem individualidade, sem história, sem atualização. Na lógica que rege a cobertura de chacinas, sobreviventes importam menos que os mortos; são estes que alimentam estatísticas e noticiários.

Morta, Letícia ganhou direito de existir no jornal, mas mereceu cobertura mesquinha. Era perto das 21h, e a adolescente, filha única, ia comprar um lanche antes de voltar para casa. Levou um tiro vindo de um carro que passou disparando aleatoriamente contra pedestres. Ficou no hospital entre a vida e a morte durante 14 dias, mas não resistiu.

Adiciono nessa reconstituição detalhes lidos na concorrência, porque a nota de 30 linhas publicada na página cinco de “Cotidiano” não deu conta nem desse resumo indigente. Nada de vida da vítima, família, amigos. Nada de chamada na “Primeira Página” ou na “Folha Corrida”, um destino natural das notícias que não cabem na capa. A Redação julgou que havia maior apelo na notícia “Pimentel descumpre corte de cargos em Minas Gerais”.

Num ataque de boa vontade, pode-se pensar que a falta de reportagens sobre ela nessas duas semanas se deu porque era menor de idade –mas os outros feridos, também ignorados, eram adultos. Num ataque de ingenuidade, pode-se perguntar se não foi por zelo com a segurança das vítimas –mas grupos de extermínio não precisam ler jornais para saber o paradeiro dos sobreviventes, ainda mais se forem policiais, como aponta até agora a investigação.

É mais factível acreditar na insensibilidade de coberturas conduzidas no automático, nas quais predominam o macro, não as pessoas, e as disputas políticas, não as histórias humanas de gente sem pedigree.

A direção de Redação diz que a chacina tem sido assunto prioritário na pauta e lembra que o crime foi manchete do impresso no dia 15, após o ocorrido. “Descuidos e falhas pontuais podem ter ocorrido, mas nem no volume nem nos destaques editoriais esse noticiário pode ser considerado insuficiente.”

Volume realmente não faltou; destaque, sim. Dar manchete para o massacre era uma imposição óbvia diante da dimensão do fato: o assassinato de 18 pessoas beira o padrão dos cartéis de droga mexicanos. Um morto a mais, e retardatário como Letícia, vale para incrementar o jornalismo de números, mas não tem “apelo” para ganhar espaço e visibilidade. Cargos valem mais.