“A Folha fala tanto em liberdade de expressão, mas censura a opinião dos leitores.” “O jornal é leniente ao permitir a publicação de mensagens que rebaixam o nível do debate.” “É uma ofensa submeter um assinante de décadas ao sistema de moderação de comentários.”
Houve um tempo em que a maior reclamação sobre a página A3 era a falta de espaço na seção de cartas. Não que ela tenha sumido; o leitor tradicional do impresso sabe o quanto é lido e disputado aquele minifúndio e reivindica sua reforma agrária há décadas. Mas não é dele que trata o parágrafo acima. Novos tempos, novas queixas.
No digital, o painel de cartas virou fórum de comentários, e a atuação do leitorado deu um salto. Ganhou velocidade, quantidade, diversidade. A média de mensagens publicadas supera 7.000 em uma semana normal e ultrapassa 10 mil quando o noticiário esquenta. Mal se posta a notícia, lá vem a opinião. É fácil, rápido e integra à perfeição o espírito destes tempos. Posto, logo existo. Existo, logo participo.
Traz ainda um atrativo poderoso para quem gosta do debate público de ideias –o alcance. Uma coisa é escrever para o círculo de amigos, outra é difundir sua opinião num site com milhares de leitores.
A seção começou aberta (“free” como a internet), ganhou limites e, nos últimos anos, vem sofrendo reveses em meios de vários países. Primeiro, porque, inicialmente sem moderação, virou um repositório de mensagens ofensivas, xingamentos, manifestações de intolerância religiosa, política, sexual, ideológica e de outras selvagerias –tudo respaldado no conforto do anonimato.
Os veículos foram forçados a criar regras mais rigorosas e a contratar equipes para controlar a barbárie porque, pela lei, é o site, e não o autor, o responsável pela publicação. Mas haja vigilância para fazer frente à “criatividade” de certos leitores.
Como numa brincadeira de gato e rato, eles inventam formas para tentar furar o filtro que bloqueia automaticamente termos e nomes. Mudam a grafia, usam apelidos que são alterados à medida que vão sendo barrados, separam as palavras vetadas em sílabas, introduzem pontos, traços, espaços, barras etc.
A moderação dá trabalho, aumenta os custos, não é peneira à prova de falhas e se tornou fonte permanente de queixas. Parte dos principais interessados nos comentários –jornalistas, colunistas, leitorado em geral– desistiu de participar e até de ler. Vale a pena?
A agência Reuters eliminou a seção. Na CNN, os comentários sumiram da maioria das notícias em 2014. Só são permitidos, com moderação, nas histórias em que os editores creem que possa haver debate qualificado. Títulos como ESPN, “Popular Science”, “Sporting News”, “USA Today” e Huffington Post decidiram acabar com a seção ou proibiram o anonimato.
Para mim, é esta última a decisão que todo veículo deveria tomar. Na maioria dos casos, o anonimato não tem razão de ser e só alimenta a falta de civilidade. É muito fácil se esconder atrás de pseudônimo para chamar um político de ladrão ou um ministro do Supremo de advogado de porta de cadeia. Mais fácil ainda quando é o veículo que tem de responder legalmente por isso.
A seção tem muitos defensores, porque é realmente um dos diferenciais do digital e, como tal, veio para ficar. “A participação dos leitores está na essência do jornalismo digital; não se trata de acessório”, afirma Roberto Dias, secretário-assistente de Redação, responsável pela estratégia digital da Folha.
É provável que Dias esteja certo, mas o anonimato não é condição para que isso aconteça. Quem quer defender publicamente crenças e valores pode fazê-lo de forma civilizada e com nome/sobrenome –e faço aqui a ressalva de que muitos já o fazem–, desde que o debate valha a pena e não se dê em um ambiente agressivo e intimidador.
Para o jornal, não vejo vantagem nem virtude em dar guarida a um conteúdo que ele jamais permitiria em suas páginas impressas.
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Vera Guimarães Martins é ombudsman da Folha de S. Paulo