Wednesday, 04 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

2.350 anos de retrocesso

INCLUSÃO DIGITAL

Pedro Antonio Dourado de Rezende (*)

Platão colocou o problema da educação dos homens e da organização do Estado no fulcro da sua filosofia, há 2.350 anos. Nela, o grande filósofo tenta encerrar a crise do logos de que são responsáveis os sofistas. Como podem os discursos falsos, durante o julgamento de Sócrates, ter sido mais persuasivos que os verdadeiros? Sua tentativa tornou-se, bem ou mal, o alicerce da nossa civilização. A palavra Academia vem de Academo, região de Atenas onde Platão fundou sua escola. Por seu legado à educação dos homens e a organização do Estado contracenam hoje, como atores centrais no drama da vida. Depois da condenação de Sócrates pelos sofistas, acusado de corromper a juventude, a gloriosa civilização ateniense começa sua trajetória descendente. Os sofistas, nas palavras de Jean Brun, dedicam-se à arte de justificar tudo, de misturar qualquer idéia com qualquer coisa, de fazer das palavras servidoras dóceis de qualquer egoísmo. Eles desenvolvem para isto a técnica da retórica, ação psicológica ao serviço de todos os oportunismos, de todos os interesses individuais que fazem do homem a medida de todas as coisas. Eles perpetuam, onde estiverem, o julgamento de Sócrates.

Como no campus da maior universidade federal brasileira, em luta campal com sangue vertido por critérios distintos de justiça para o diálogo entre a educação e o Estado. Esta luta prossegue, para quem vive este drama nos palcos da nossa pátria. Queremo-la mãe gentil. Mas a retórica sofista, refinada através do poder econômico, brutalizou-a na guerra da informação, um dos fronts da guerra maior em que estamos todos metidos. Não devemos nos iludir sobre a grande guerra de hoje. É a guerra mítica entre dois dogmas de liberdade. Um, que prega a supremacia da liberdade de mercado; outro, que prega a da liberdade humana. O atentado terrorista às torres da catedral do primeiro fechou o espaço de convivência entre ambos, levando-os para o confronto no teatro da intolerância, onde a gentileza não é ouvida nem bem-vinda e o maniqueísmo leva vantagem. Nesta grande guerra busca-se o poder que autoriza débitos na conta da segurança alheia, a crédito de quem possa impor suas cobranças. Para uns, segurança é dinheiro no banco. Para outros, é saber em quem confiar.

Há muita tensão entre o projeto do ministro que rege o dever estatal de educar seus cidadãos, e os anseios e expectativas dos brasileiros por educação. Qual educação? Em entrevista à Folha de S. Paulo de 21/10, o ministro afirma que o modelo de universidade pública e gratuita não deve sobreviver mais que cinco ou seis anos. É anacrônica, e o Estado não pode arcar com tamanha ineficiência. Pudera. O Estado tem que honrar suas parcelas do pedágio para o nosso mergulho cego na globalização, seguindo roteiros rabiscados por fundamentalistas de mercado acantonados no poder, roteiros tidos como emanados de leis naturais, esculpidas em pedra por uma onisciência inconspícua. A ineficiência induzida pelo descaso é o fio condutor da retórica sofista do ministro. Se a partitura não se encaixa ao movimento da batuta e a orquestra desafina, a platéia culpa os músicos quando o regente é estrela.

Quanto piores os vícios da academia asfixiada, mais fácil justificar seu projeto: troca-se a partitura. Ao noticiar um dos reveses que a batuta ministerial sofreu no STF, Boris Casoy chamou as universidades federais de madrassas. Estou neste artigo trabalhando por senso de dever, mesmo sem receber. Seria isso? Confesso não saber que tipo de madrassa elas são hoje, aos olhos do âncora do SBT. Mas posso antever como as querem os mulás do fundamentalismo de mercado.

A grande guerra atual

Recitando suras da cartilha fundamentalista do BID cinco vezes ao dia, se possível voltado em direção às câmeras de TV, o ministro decora o roteiro do seu projeto, prescrevendo a solução inscrita na sua agenda para a ineficiência estatal na educação. Este roteiro se resume na asfixia progressiva do ensino público, e a transferência dos recursos ali alocados para financiar sua transformação em atividade mercantil credenciada. No front da mídia, explicações da lógica econômica sobre como as alianças políticas adquirem valor de moeda paralela nesta transferência provocam nele indignação irada, a demandar ingestão de cicuta moral por quem as articule. Posa de herói quando sua imagem é chamuscada pelo calor dos holofotes, na mesma toada em que o Fantástico da Globo nos mostra dois outros quadros. Num deles, estão os mais bem pagos funcionários do Estado chinês: seus professores universitários. No outro, a tragédia do nosso maior parceiro de Mercosul, que se embrenhou pelo labirinto do fundamentalismo de mercado com mais afã do que nós.

Hoje, a Argentina chora por sua soberania em leito de morte. E a China, que mesmo tendo abraçado a doutrina comunista nunca abandonou Confúcio ? sua imagem própria e especular de Platão ? exerce sua soberania com saúde de ferro e economia robusta, através da inevitável odisséia capitalista. A intermediação ideológica do Estado na grande guerra atual não é mais o preto-no-branco que era quando a guerra era fria. Há liberdades e liberdades, hoje em choques inusitados. Mulás do fundamentalismo de mercado, promovendo a agenda globalizante na periferia do capitalismo, pregam que soberania é hoje, junto com a República de Platão, uma penca de conceitos utópicos, fantasiosos e descartáveis. Não podemos perder de vista que a grande guerra atual é entre dogmas de liberdade, quando a própria palavra liberdade se torna o alvo mais cobiçado nos fronts midiático e jurídico, como se estivéssemos brincando de loucura coletiva.

Entre estes dois fronts, o fulcro de Platão é um cavalo de batalha, como mostra o confronto entre duas táticas que aqui comentaremos. Uma, adotada pelo MEC para avançar as partituras do seu maestro até as fronteiras digitais, está estampada no edital da Anatel para o programa Internet na Escola. Outra, adotada por quem defende a cidadania no cerco que lhe promove a agenda ministerial, questiona nos tribunais a legalidade, a moralidade e a sensatez deste edital. Para compreendermos a natureza fulcral desta batalha, voltemos à pergunta sobre o que é Educação. O plano de ataque dos mulás de mercado não surpreende, ao pintar seu estofo não mais como formação cívica do homem, mas como treinamento em técnicas a serem impostas. Pelo mercado, é claro.

Não surpreende que este plano busque transformar o ensino médio e profissionalizante em madrassas capitalistas, linhas de produção para a lobotomização ideológica e a perpetuação de dependências mercantis da sociedade aos monopólios que singram a globalização. Como a cidadania está cercada, quem a defende precisa dosar seus recursos e estabelecer táticas de resistência com prudência. A tentativa inicial foi a de se denunciar o servilismo marqueteiro que agride os princípios da livre concorrência no edital, e desrespeita a pluralidade de saberes, de idéias e de técnicas no processo educativo, herdada de Platão. Para o filósofo, o verdadeiro conhecimento se constrói no embate do diálogo, e não sob o véu do monólogo ou no fuxico das cozinhas palacianas.

Esta agressão está lavrada na especificação de um único sistema para quase todos os computadores, neste edital. Justamente o mais nefasto em termos de custos diretos e indiretos, e em termos de renúncia de controles orçamentário, gerencial e pedagógico, conforme comentam todos os especialistas que já se manifestaram a respeito, fora da sombra do MEC. Estas renúncias estão expressas, em legalês, na licença de uso do sistema operacional Windows, um contrato de adesão objeto de licitação no edital da Anatel, com dispensa de concorrência. Os mulás do mercado em plantão para defendê-lo querem discutir, ou enxergam, apenas o fetiche pelo objeto, como se fora ele o licitável. Tal objeto provoca efeitos especiais na percepção cibernética do internauta como nenhum outro, e daí o fetiche. Mas tem efeitos colaterais que representam riscos, e a mesma funcionalidade que outros. A caracterização do interesse público neste fetiche, oferecida em juízo como interesse pelo licitável, é um exemplo clássico da doutrina maquiavélica, a moderna sofística aplicada às guerras de poder. Ela surge de um jogo preliminar de empurra-empurra, onde o mais fraco e desinformado, tutor do “benefício” em disputa, fica com todos os riscos morais pelo possível fracasso e pelas conseqüências das decisões que, não sabe bem por que, está tomando.

Assim, se no jogo licitatório principal entrar em campo o esperado, haverá de sobra dinheiro do FUST e não caberá discutir se o sistema escolhido é ou não o de menor custo. O mercado o prefere, como um benefício. E se entrar em campo o inesperado, aciona-se o trator do palácio para empurrar tudo ao início. A denúncia desta manobra não despertou alarme no tribunal, já inundado pela mídia com a retórica sofista do fundamentalismo de mercado, negando-lhe o embargo liminar do edital. A segunda tentativa, entretanto, surtiu algum efeito por intermédio do seu caráter formal. O edital da Anatel foi embargado por liminar, por não estar contemplado no Plano Plurianual. A linha de frente se deslocou então para a tribuna do Congresso Nacional, onde a arrogância do mais forte foi recebida com vaias e xingamentos, cercados pelas câmeras de TV, dirigidos à precipitação do presidente estreante da casa, tornando inevitável o diálogo que o ministro tanto abomina. Perdão, mas alguém precisa lembrar a ele que o mercado também já preferiu a Encol, as empresas pontocom, a cocaína, o ecstasy etc.

Platão no limbo

Com o critério do menor custo fora do radar jurídico, permitindo, em princípio, que o edital da Anatel dispensasse concorrência na licitação de um único sistema para quase todos os computadores, a tática da defesa da cidadania foi a de introduzir, na linguagem do PPA, o princípio da pluralidade para os fins a que se destinam os recursos do FUST. O PPA agora contempla investimentos do FUST no programa Internet na Escola, prescrevendo, em acordo político, dois sistemas nos seus computadores. O acordo gerou inquietude, e os mulás do mercado mandaram virar o disco sofista. Passaram agora a articular uma cantilena moralista, resmungando e apelando para o critério do menor custo, para desmoralizar a tática cidadã. Acusam-na de protelar a distribuição de um benefício por motivos eleitoreiros. Um benefício pedagógico sem o qual o ensino público evoluiu ao longo de 2.350 anos, e cuja pressa de introdução atropela e esconde muita coisa estranha. Se for para a decisão ser tomada agora por um comitê, entre o conhecido Windows e o praticamente desconhecido Linux, o custo da solução não é problema, e o mercado é soberano, perfeito e sábio em uma de suas preferências. Lado um do disco. Se for para a decisão ser exercida em liberdade pelas escolas, a cada vez que o computador é ligado, a cada vez que um projeto pedagógico é contemplado, a cada vez que se pensar em orçamento, o custo da solução é problema, e os outros competidores no mercado também carregam seus sacos de velhacarias e malandragens. Lado dois.

Virou o disco o diretor da Secretaria de Ensino a Distância do MEC, Pedro Paulo Popovic, conforme nota de Gilmar Piolla na revista eletrônica no.com.br de 26/10. Em ofício-circular aos secretários estaduais, ele convoca a tropa, mandada à linha de frente legitimar a agenda fundamentalista, para registrarem suas escolhas por escrito. Para esvaziar a interpretação da linguagem do PPA oferecida pela comissão legislativa que o negociou, neste ofício a cantilena do segundo lado bloqueia-lhes ou dificulta-lhes o direito à diversidade na sua nova ferramenta pedagógica. Há nesta cantilena uma zoada que pode soar como ameaça de retaliação por esbanjamentos com “outros sistemas”, fantasiando os secretários, mais uma vez, de legitimadores da farra orçamentária inicialmente proposta com o sistema mais caro, talhada a sustentar o fetiche coletivo pela grife digital que exibe a pior ficha criminal do planeta. O mesmo esbanjamento cuja imoralidade é zombada no primeiro lado do disco.

O plano pedagógico do Sr. Popovic para o programa Internet na Escola se resume, até aqui, a isso. Engessar a escolha cega e dirigida entre dois sistemas, empurrada às secretarias estaduais, levando-se ao forno licitatório em fôrma de bolo edital. Se a massa misturada no Congresso não couber na fôrma, bata-se e amassa-se de novo. A bem da verdade, a escolha dos secretários foi quase cega, pois lhes foram mostrados alguns slides. Durante três dias, em ambiente cultural controlado para manipular curiosidades e divergências. Slides de um sistema proprietário, que todos já usam, e de um outro livre, que é o cão chupando manga. Procurou-se com isso estampar legitimidade a esta receita de bolo para o edital, como indicam os autos de ações civis públicas contra ele, atas ambíguas e relatos conflitantes do que foi combinado na encontro da batedeira. Dois interesses públicos estão em campo: o do Congresso Nacional e o da massa de consulta dirigida do MEC. Haverá jogo?

Em contraste, a opção pelo software livre não foi desdenhada, ridicularizada ou manietada pelos governos da China e do México. Pelo contrário. Eles é que não são bobos, pois escolheram a opção que melhor se adequa às suas necessidades pedagógicas, gerenciais, orçamentárias e estratégicas na informatização do ensino. Vencida a barreira cultural, tal opção só gera custos de manutenção e suporte, enquanto o software proprietário gera custos adicionais de licença de uso, cada vez mais sufocantes e transmissores de dependências legais e artificiais, destinadas a perpetuar estes custos adicionais. Através dessas licenças se paga para se adquirir dependência a padrões e formatos proprietários, a serviços e suporte quase sempre monopolizados, como no vício às drogas. O Estado inglês já passou todos os seus bancos de dados para a Microsoft, e agora ninguém acessa o e-gov bretão sem seus produtos. “É problema com a compatibilidade nos protocolos criptográficos dos concorrentes”, nos esclarece a empresa. Por essa e por outras ela já foi condenada até a terceira e última instância, em 9/10/01, por práticas monopolistas predatórias, lesivas à sociedade onde está sediada. Seção 2 do Shermann’s Act.

Este tipo de notícia precisa ser garimpada, em meio a uma blitz de propaganda que quer julgar a Justiça. E quando encontrada, dá mais urticária nos editores da grande imprensa do que pó de antraz. Em sua ação política, o poder econômico monopolista toma como interesse público o seu próprio, sacramentando a identificação entre ambos em leilões de acordos de sustentação política, ungindo assim sua ideologia fundamentalista com o óleo sagrado da democracia. Se a mão invisível do mercado, que tornou monopolista a Microsoft, tiver mesmo a sabedoria suprema que lhe atribuem Adam Smith e seus talibãs, estaria hoje nos instruindo a rasgar as conquistas humanistas da revolução francesa, que ainda cremos dar valor de face à democracia moderna. Como já fez o talibã afegão. Não se pode imaginar Platão contemplando nada mais antipedagógico. Se os donos do edital têm tanta certeza de que a escolha da China e do México foi equivocada, por que não querem permitir aos educadores brasileiros chegar a esta conclusão por si mesmos, no exercício de suas funções? Antes do acordo político do PPA, o custo do software não era problema. Por que passou a ser? E por que a ficha criminal do único fornecedor antes escolhido nunca é? Para chegarmos a uma resposta plausível no final deste artigo, seria útil vislumbrarmos antes algumas relações.

Se á para botar Platão no limbo da história, faz sentido a posição do ministro da Educação, contra o ensino de Filosofia nas escolas do programa. De novo, a justificativa para isso é a mesma zombada no lado um e rezada no lado dois do disco sofista: a racionalidade econômica, guardada na manga do paletó para ser sacada aos microfones quando convém. Subitamente convertidos à importância do critério do melhor preço como medida de impessoalidade e eficiência no trato da coisa pública, os que lhe apóiam agora também apelam, quem diria, para a moralidade desse critério. Cláudio Humberto, aquele que era porta-voz da aventura collorida, escreve no Jornal de Brasília de 24/10/10 sobre “uma corrida do ouro” (sic) no MEC: “O lobby do software livre, liderado pela Conectiva, empresa de capital estrangeiro… impõe ao MEC o Linux, compartilhado com o Windows. Alguém já comprou algum micro com dois sistemas operacionais?”

Os mulás e a o bicho de duas cabeças

Precisamos analisar os sofismas que se acumulam. Quem lidera o lobby pelo software livre neste edital são partidos políticos com programas confessáveis, centrados na defesa da cidadania contra a ação dos vendilhões da pátria. Gente que se orgulha do seu quixotismo de consciência. A Conectiva tem, sim, a lucrar com ele, mas não o lidera. Nem na Justiça, que ela só acionou muito depois do embargo. Nem no Congresso, onde o software livre é uma bandeira muito maior do que o edital da Anatel. E nem na mídia, onde as mais graves e contundentes críticas vêm da academia. Ademais, um lobby pela liberdade não pode rejeitar, cooptar ou negociar a adesão de quem quer que seja, sem contradizer-se. A Conectiva não é monopólio nem tem exclusividade sobre o GNU/Linux, ao contrário da Microsoft sobre o Windows, que ainda estende este monopólio às representações regionais exclusivas para suas grandes contas. A Conectiva teria que enfrentar concorrência, e concorreria apenas para prestação serviços, de suporte e valor agregado em sua distribuição, pois a licença de uso do Linux, sendo livre, é inegociável.

Em situação oposta está a Microsoft, que embute nos seus ardilosos contratos select a inexigibilidade de concorrência para suporte a seus produtos, de carona com a das licenças de uso, enjambrada sob o argumento de que se trata de um “bem de interesse público com fornecedor único”. Como pode Claudio Humberto saber que a Conectiva ganharia a concorrência pelo Linux? Ou será que ele não entende nada de software livre, apesar de andar publicando a respeito, como fazem outros palpiteiros que nunca leram uma licença GPL? É natural que este choque de lógicas pire a cabeça de fundamentalistas do mercado, mas não há como se fugir dele.

Os argumentos para justificar a inexigibilidade de concorrência na licitação do “bem único” Windows, e para evidenciar o seu interesse público, são, no fundo, um só: o fetiche da grife. O mercado prefere este bem hoje, e os alunos dele precisam para ficarem de bem com o mercado, amanhã. O sofisma no argumento está em dizer-se que se o mercado o prefere hoje, vai preferi-lo amanhã. Não importa o custo. Não importa a experiência com alternativas. Não importa como a informática evolui entre o dia em que o aluno entra na escola e o dia em que sai. Mas a suprema ironia deste sofisma está na própria história do Windows. A Apple apostou todas suas fichas na Justiça para barrar o Windows na sua origem, com base no seus direitos autorais. A Apple argumentava tratar-se de um sistema operacional que parecia e funcionava como o seu Macintosh, até então o “bem único” na classe dos sistemas operacionais com interface gráfica. A Microsoft venceu, em 1988, argumentando que não estaria infringindo os direitos autorais da Apple, pois “look and feel” de software não é coberto por estes direitos. Para vencer a Apple nos tribunais, a empresa admitiu que seu produto era, sim, cognitiva e funcionalmente idêntico ao do litigante, mas sustentou que isso não importa ao direito autoral, de marca ou comercial. Contudo, para obter a dispensa de concorrência em licitações públicas, ela quer nos convencer que seu produto é diferenciado e único, e que isso importa ao direito administrativo.

Cláudio Humberto aponta a origem do capital da Conectiva chamando o lobby do Linux de “nada bobo”. Por acaso existe algum lugar na nova economia onde o capital global ainda não penetrou? Certamente não na Microsoft. E se a Conectiva passar a remeter lucros ao exterior, como se queixa, extraídos dos 45 milhões anuais que seriam sua receita bruta com serviço e suporte à sua distribuição do GNU/Linux, quanto estará remetendo então a representante exclusiva da Microsoft, só com a licença do Windows? Em vez de exportar ou morrer, não seria mais sensato importar sem desperdiçar? Já ouvi falar de lobby fraco e forte, sujo e limpo, mas nunca de lobby bobo e esperto. Sempre achei que todos os lobbies fossem espertos. Bobo ou não, o lobby pelo software livre não pode rejeitar a adesão da Conectiva, pois, novamente, quem defende a liberdade humana não pode escolher aliados, sem escorregar para o sofisma e o descrédito.

E Cláudio Humberto então pergunta: “Alguém já comprou um micro com dois sistemas operacionais?” Por que ele não pergunta se alguém já usou um? Toda escola de computação que se preza busca racionalizar seus recursos e cobrir, no seu programa de ensino, as tecnologias possíveis. O boot múltiplo é uma delas. E se cabem dois sistemas numa máquina onde há poucas, lá devem estar, pois pelo menos um sistema livre tem que estar em algum lugar, já que ensinar sistemas operacionais sem acesso a código fonte é embromação. Estamos aqui falando de escolas que se prezam, e de um edital para pôr computadores em escolas. Entre usar e comprar, mesmo que o compartilhamento de sistemas decorra, via de regra, de uma instalação manual, qual fornecedor não se desdobraria para automatizar exigências num pedido deste porte? Mas já que ele viu o viés do negócio antes de ver seu motivo, por que ele mesmo não respondeu? Por acaso saberia explicar a resposta?

Quem procurar, nas lojas de computador, por um que já venha com dois sistemas operacionais instalados, não vai mesmo encontrar. Mar por quê? Porque o fabricante de computador que se atreva a soltá-lo assim, legal de fábrica, sofrerá retaliações da proprietária do Windows. A primeira delas na forma de preço diferenciado para a licença dos seus produtos, conforme consta nos autos do processo em que foi condenada nas três instâncias por práticas comerciais destinadas à manutenção de monopólio, danosas à concorrência. Por que submeter-nos passivamente a estes abusos, como insinua a pergunta sem resposta? Monopólio assim é bom, mas se for de Estado então é ruim? Os sofistas querem fazer todo mundo marchar para o matadouro do fundamentalismo de mercado, sem mugir, já que a mídia mostra todo mundo indo mesmo para lá. Cláudio Humberto poderia ter perguntado para que dois sistemas operacionais na escola, já que fala de dinheiro indo para o espaço com o Linux, “caso as escolas acompanhem o mercado”. Mas encerra a nota com uma frase profética: “O TCU vai ter trabalho”.

O trabalho do TCU

Como apresentado por ele, o condicional na dança entre escola e mercado seria pura retórica sofista. A mudança de conjugação verbal na frase final da sua nota mostra certeza. Deve estar mesmo na agenda do ministro da Educação impedir que o software livre tenha espaço, como já soprou o ministro das Telecomunicações, gestor do FUST, em coletiva divulgada pelo boletim da Câmara de Comércio Eletrônico, em 24/08. A profecia auditabilista de Cláudio Humberto deve estar se referindo ao dinheiro gasto com o Linux, venha o sistema a ser usado ou não. Como profecia, teria o mesmo tom cifrado de ameaça persecutória, emanado dos ofícios-circulares à linha de frente do MEC. Outrossim, dou um doce a quem provar que meu palpite está errado. Que o trabalho que ele diz que o TCU vai ter é a continuação do trabalho que já vem tendo com os contratos select entre a Microsoft e o governo brasileiro.

Como o trabalho que teve o ministro Iram Saraiva para concluir sua auditoria preliminar no Serpro, e que botou na rua os diretores que o assinaram por cada lado. Ou o que está tendo para concluir a do contrato entre a Caixa Econ&oocirc;mica e sua representante exclusiva para grandes contas em Brasília, a TBA. Sistemas compartilhados só estão no PPA porque o fetiche da grife Windows nos foi apresentado, pelo próprio MEC, como inegociável e inatacável pelo argumento do melhor preço. Se o MEC quer agora posar de novo cristão e trazer à baila a força moral deste argumento, só tem um jeito de fazê-lo com seriedade e isenção: descartando a referência ao Windows do edital. E se não o fizer por este motivo terá outro, cujo desprezo apontará suas intenções em direção improba.

A Microsoft já anunciou que o Windows ME e CE, especificados no edital da Anatel, serão descontinuados e que a licença de uso do seu sucessor, o já lançado Windows XP, terá prazo de validade fixado pela empresa, em princípio anual e com preços futuros desconhecidos. Não adianta nem pensar num jeitinho de as escolas continuarem a usar tal software com licenças vencidas, pois ele só carrega depois de conectar-se com a empresa em Redmond para autenticar sua licença. Portanto, mesmo que a Anatel pague a fatura de aluguel pelas licenças de uso, cujo equivalente para o software livre não existe, o aluno só poderá digitar uma frase na tela se a linha telefônica e a rede TCP/IP da escola estiverem funcionando, gerando para ela despesas e gargalos adicionais, e para as operadoras de telefonia fixa tráfego e receita extras, tudo desnecessariamente. Acontece que essas empresas são parceiras privilegiadas por pré-seleção no programa Internet na Escola, detalhe sobre o qual os mulás do mercado também se calam. Isto sim é jogar para o espaço, sem subterfúgios condicionais, dinheiro público em licenças de uso que já se sabem obsoletas, contratos viciados que só servirão para sacramentar, em troca de um fetiche servil, a renúncia do gestor ao controle orçamentário do programa, caso seja ignorada a opção pelas autonomias expressas na configuração sugerida pela comissão parlamentar que negociou o PPA.

Quem quiser perguntar por que os alunos devem estudar em dois sistemas, poderá chegar à resposta observando o mundo. Alguém prefere enfrentar o mercado de trabalho com fluência em um só idioma? Se Geografia já é ensinada na escola, para que então aprender História? Se já sabem Aritmética, para que estudar Geometria? É um equívoco, para não dizer propaganda enganosa, afirmar que o mundo lá fora é só Microsoft, como já o disseram alguns mulás de plantão, fazendo-se de tontos. O mundo da informática lá fora não é só computador pessoal. Tem também os servidores, sem os quais a internet não existe, e nos quais o sistema Linux e outros Unix-like predominam. Se educação agora é treinamento, seria estultice alijar nossos alunos deste segmento tão estratégico do mercado. E insistir nesta tolice só pode ser birra arrogante, ou indício de variáveis ocultas em alguma agenda política. Antes de ser alardeada como um elefante branco a encarecer o programa, a opção pelo compartilhamento de sistemas precisa ser vista como uma decisão política soberana negociada, permitindo às escolas três opções importantes, antes não contempladas.

** A oferta pedagógica diversificada no traquejo digital, representando mais de um segmento do mercado;

** A autonomia para oferta de serviços com conteúdo didático em rede global;

** Uma saída estratégica para resgatar o programa do fracasso, permitido às escolas se virarem em tempos de vacas magras, mantendo suas redes com software livre.

Se tiverem que escolher hoje entre o que conhecem e o que não conhecem, não terão, seguindo a manada, estas opções quando a fonte secar. Se o MEC é recém-convertido à causa da moralidade do melhor preço, e quer se empenhar em manter o orçamento atual do programa, sem largar o seu osso e sem desrespeitar o PPA, basta que faça três coisas.

** Que no edital exija, do fornecedor dos computadores, a instalação gratuita de um segundo sistema em software livre (pode até mesmo ser a distribuição do Linux da Conectiva, disponível grátis no site da empresa);

** Que passe às escolas as senhas de acesso aos sistemas livres entregues;

** Que deixe os sistemas livres instalados nos HDs como reserva técnica, sem contratos de manutenção ou suporte.

Suporte a sistemas livres existem em graus que vão do auto-aprendizado à terceirização profissional com atendimento personalizado, adaptativo e em tempo real, num espectro muito mais amplo que o do software proprietário. Afinal, é só assim que se ganha dinheiro com software livre. O tempo das vacas magras certamente virá, quando o filão de ouro de que fala Claudio Humberto minguar, quer por intervenção da Justiça, quer pela cobiça coletiva sobre um orçamento estatal que definha. Definha com o crescimento da dívida pública, pressionada pelo peso das incertezas globais no câmbio e no serviço dos juros, mantendo como refém a pouca soberania que ainda nos resta. Quando este tempo vier, os pais desta criança já terão lhe dado alforria, as escolas terão que se virar como puderem e este amplo espectro lhes dará mais chances de encontrar sobrevida para sua plugagem. Até lá, quem estiver investido em autonomia saberá se equilibrar. Resmungar pelo espaço ocupado nos HDs enquanto este tempo não vem é mais pilhéria do que sofisma, pois mais de 90% dos arquivos da plataforma que se quer licitar à Microsoft nunca serão usados nas escolas.

Convite à prática

Convido aqui os Srs. Claudio Humberto, Claudio Salles e Pedro Paulo Popovic a se licenciarem por umas semanas e virem administrar uma rede de computadores com Windows ME ligados diretamente à internet, na escola onde leciono. Uma instalação-piloto da licitação que defendem. Verão o que significa a ausência de controle sobre o que podem fazer, neste cenário, usuários plugados que convivem com as mazelas de nossa educação. A decisão de confiar cegamente na Microsoft e seus parceiros lhes dará as mesmas dores de cabeça de quem já a tomou, expondo-os a artimanhas marqueteiras, a código malicioso que só ataca falhas da arquitetura de seus produtos, como o Nimda, o CodeRed, o Sircam, o ILoveYou etc., cada um se espalhando com mais virulência que os outros, antes que os antivírus possam ser atualizados. Outro assunto mais alérgico do que pó de antraz para a mídia. Depois de ralarem nisso, poderão brincar de administrar remotamente as redes escolares montadas com sistemas livres, como o Linux, que permitem o controle de acesso ao sistema de arquivos e processos. Verão como o cão chupa manga. Este convite é para que saibam do que andam falando, quando voltarem a brandir, diante de microfones e teclados, estimativas sacadas do arco da velha sobre custos indiretos de treinamento, suporte e manutenção para o programa Internet na Escola, nesta e naquela plataforma.

A sociedade brasileira só terá algo a ganhar neste debate se pudermos transformá-lo de conversa de surdos em diálogo acadêmico. Não no sentido pejorativo que o termo ganha dos sofistas, mas no seu sentido original, de um exercício dialético pelo método socrático. É notório que, para isso, devem ser antes vencidas algumas resistências ao diálogo, inseminadas pela mosca azul. Esta transformação se resume, em seu âmago, na superação de um medo palaciano. O medo das idéias de liberdade no ciberespaço, que diluem o poder da intermediação política e seus dividendos. Tal superação envolve o desvelamento de intenções últimas, para cujo rito devemos nos lembrar de três fatos.

** A lei de responsabilidade fiscal, invocada no embargo do edital da Anatel que permitiu o acordo do PPA, também prevê punições por improbidade administrativa.

** O caput do artigo 37 da Constituição Federal está assim redigido: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:…”

** A fraude no TST-SP começou com um edital dirigido, eivado de casuísmos e arbitrariedades.

Os termos da consulta dirigida pelo MEC aos secretários estaduais só poderão encaixar seus autores na prescrição constitucional deôntica acima por meio de muita retórica sofista. Na fixação obsessiva pelo fetiche de grife digital que querem selar, sem nenhum critério de autonomia ou soberania, esconde-se uma lição histórica. Será a mesma lição ensinada a Atenas pela eloqüência dos sofistas, que convenceram juízes do mal que causava à juventude o pensamento livre e o exemplo de vida de Sócrates, hoje caricaturado por Richard Stallman e sua ordem de São I-GNU-cius. Uma lição que Platão aprendeu e quis nos legar. Porém, por alguma razão misteriosa, só aprende com erros alheios quem estiver preparado para reconhecer os seus próprios. Tanto os bem-intencionados como os inconfessáveis. Como na escolha da ancoragem cambial à moeda americana, por aprendizes de feiticeiro na Argentina, os sofistas podem vencer novamente. Mas o legado de Platão permanece, como monumento à dignidade humana.

(*) Professor do Departamento de Ciência da Computação da Universidade de Brasília. Sítio: <www.cic.unb.Br/docentes/Pedro>

    
    
              
Mande-nos seu comentário