Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

90 anos de jornalismo e irreverência

‘Quando vejo algo escandaloso, minha primeira reação é de indignação. Minha segunda reação é rir. Esta é mais difícil mas muito mais eficaz.’ (Maurice Maréchal, fundador do jornal Le Canard Enchaîné)

Pode um jornal sobreviver sem anunciantes? Le Canard Enchaîné é uma prova eloqüente de que não somente é possível sobreviver um tempo como por muito tempo.

No dia 10 de setembro, um sábado, o jornal satírico mais importante da França completa 90 anos com a liberdade de sempre, sem rabo preso a anunciantes ou a partidos políticos. Seu fundador, o jornalista Maurice Marechal, talvez não acreditasse em tamanha longevidade quando, em plena Primeira Guerra Mundial, criou seu ‘pato acorrentado’ (‘canard’ é o nome que se dá aos jornais na gíria). O ‘acorrentado’ era uma alusão à censura que tinha então justificativas militares e acorrentava os jornais, tornando-os porta-vozes de todas as mentiras oficiais que interessavam à França em guerra. Mais ou menos o que se passou na imprensa americana, que mesmo sem estar submetida à censura se sentiu na ‘obrigação patriótica’ de divulgar as versões oficiais sobre a guerra no Iraque.

Le Canard Enchaîné, ou simplesmente o Canard para os leitores fiéis, nasceu de esquerda, pacifista e anticlerical. Seu primeiro editorial dizia, num texto de fina ironia, que o jornal não seria o porta-voz dos interesses militaristas veiculados por uma imprensa comprometida, conformista e manipulada.

‘Todos sabem que a imprensa francesa, sem exceção, só informa a seus leitores, desde o início guerra, notícias absolutamente verdadeiras. Pois bem, o público está cansado. O público quer notícias falsas… Ele as terá.’

Pelo visto, o público francês precisava de um jornal como o Canard, pois o compra e o apóia há’ 90 anos. E, mais um paradoxo francês, sendo o único jornal que vive sem publicidade, é um dos poucos que não está no vermelho.

Queda do ministro

O último número do Canard, datado de 17 de agosto, tem na capa, acompanhando o texto principal, uma charge do papa Bento XVI cercado de jovens de Colônia, de braço levantado como na saudação a Hitler, dizendo: ‘Por um Reich de Jesus de mais 2 mil anos’. O título da charge é ‘Velhos hábitos’, uma alusão ao passado do jovem Ratzinger na Juventude Hitlerista.

Em abril deste ano, o anticlericalismo virulento do Canard se voltou contra o circo em que o Vaticano transformou a agonia e a morte de João Paulo II. O jornal exerceu seu humor irreverente com um talento poucas vezes alcançado tanto nos títulos quanto nos textos e nas charges, que são o seu forte.

Sim, porque o Canard praticamente ignora as fotos. E as cores também. O jornal é totalmente em preto e branco e tem como única cor os fios vermelhos e alguns títulos, também em vermelho. Mas essa sobriedade nada tem de sisudez. Muito pelo contrário. Ele é uma espécie de Casseta & Planeta impresso e não poupa nenhum político de nenhum partido.

Mas se engana quem pensa que o jornal vive de gracinhas. As piadas, os jogos de palavras e as críticas virulentas a tudo e a todos freqüentam as mesmas páginas das reportagens investigativas que derrubam ministros. O mais recente foi o ministro das Finanças, que caiu este ano depois que o Canard denunciou o uso de dinheiro público para pagar um apartamento caríssimo num dos bairros mais sofisticados de Paris, porque o apartamento funcional era pequeno demais para a grande filharada do ministro.

Dose semanal

Depois da renúncia do ministro Hervé Guymard, o então primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin se viu obrigado a fazer uma lei regulamentando e limitando o financiamento de apartamentos funcionais dos ministros da République Française.

Nesse caso, toda a imprensa francesa não fez mais do que suitar Le Canard Enchaîné, que marcou mais um tento em sua longa história de reportagens investigativas irrepreensíveis na apuração e no humor.

Milhares de leitores fiéis não podem imaginar a vida sem a dose semanal de humor inteligente das quartas-feiras, quando os acontecimentos mais importantes da França e do mundo passam pelo crivo dos jornalistas do Canard.

Longa vida ao jornal.

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Jornalista