Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Sobre as frequentes “facadas” virtuais…

(Imagem: Imagem de til)lbrmnn por Pixabay

Conforme já comentado por mim neste portal (Edição 1285), em 13 de abril passado um homem acometido de uma crise de esquizofrenia matou a facadas seis pessoas em um shopping center de Sydney, Austrália. Dois dias depois, num outro bairro desta mesma cidade – e durante uma missa – um jovem esfaqueou um bispo e um padre de uma igreja Cristã Ortodoxa Assíria, por “motivação religiosa”, segundo a polícia.

O primeiro caso foi imediatamente tratado por dezenas de portais como sendo “o ataque de um islamista ocorrido num bairro de judeus”. O homicida, um australiano, foi abatido por uma policial que tentou impedi-lo.

No segundo, o delinquente foi preso pela polícia. Como a missa estava sendo transmitida online, além de policiais o esfaqueamento levou cerca de 2 mil pessoas para o redor da igreja. No confronto, vários carros da polícia foram danificados e alguns agentes foram feridos, já que os presentes queriam executar ali mesmo o esfaqueador. Defendido pela polícia, ele ainda aguarda julgamento.

Facadas mais recentes – e mais notáveis ainda – aconteceram há poucos dias, na Inglaterra. No dia 30 de julho, na cidade turística de Southport, um rapaz de 17 anos matou 3 meninas, de 4, 7 e 9 anos, num evento de dança infantil, deixando outras 8 feridas.

Antes mesmo que a polícia revelasse a identidade do assassino, segundo o inglês Marc Owen Jones, um analista de desinformação online, houve “pelo menos 27 milhões de visitas ou de postagens no X declarando ou considerando que o atacante foi um muçulmano, um imigrante, um refugiado ou um estrangeiro” (@marcowensjones).

Mas entre muitos, um dos maiores divulgadores do esfaqueamento foi o inglês Andrew Tate – que aguarda julgamento na România, acusado de estupro e de tráfico humano. Tate postou no X para seus 10 milhões de seguidores que “um imigrante ilegal chegou de barco um mês atrás e decidiu esfaquear crianças” (@Cobratate). Em seguida postou uma foto do rosto de um homem negro com os dizeres: “Este é o homem de Cardiff que assassinou as crianças. Recém-chegado em um barco”. E concluiu: “Um monstro demoníaco de 17 anos”.

De fato, confirmou a polícia, o rapaz tinha 17 anos e era negro. Mas nunca chegou de barco pois nasceu em Cardiff, na Inglaterra, filho de pais africanos, vindos de Ruanda. O rosto na postagem de Tate não é o do rapaz (a pessoa que vi na foto, no meu entender, tem em torno de uns 40 anos ou mais). A “notícia” postada por Tate foi de imediato adotada e expandida por Dan Wooden e Lawrence Fox, dois comentaristas recentemente demitidos da GB News inglesa por divulgarem informações falsas.

A reviravolta da civilidade

Lawrence Fox é porta-voz e líder do Reclaim Party, partido que prega o fechamento total das fronteiras inglesas e o fim da entrada de imigrantes no país. Numa primeira postagem ele afirmou que “o criminoso estava numa lista de suspeitos terroristas”, fato também negado pela polícia. Ainda assim publicou para seus 530 mil seguidores no X: “Chega dessa loucura. Nós precisamos remover permanentemente o Islamismo da Grã-Bretanha. Completa e inteiramente”.

O próximo portal a embarcar nessa onda no X foi a Europe Invasion. Ali foi postada e acessada 7 milhões de vezes a versão de que “o atacante é suspeito de ser um imigrante muçulmano”. A frase é ilustrada por uma imagem criada por inteligência artificial que mostra um menino de uns três anos, correndo. Ele corre, sendo seguido por quatro homens adultos, vestidos como orientais, um deles erguendo uma espada próxima à cabeça da criança.

Chegou-se mesmo a inventar um nome para o rapaz: Ali-All-Shakati foi o nome dado por uma negacionista da mudança climática e extremista anti-Covid lockdown na Inglaterra (@artemisfornow). O nome foi adotado e divulgado por um tal Channel3Now News, um canal anônimo no Youtube. A velocidade e o alcance dos meios digitais nos levaram ao resultado esperado: no mesmo dia, e nos dias seguintes, em pelo menos 12 grandes e médias cidades inglesas, aglomerações de centenas e milhares de pessoas foram para as ruas. Atacaram, no mesmo dia 30, duas mesquitas em Southport. E, em outras cidades, algumas acomodações onde os governos locais acomodam refugiados políticos e imigrantes, todos aguardando sua regularização no país.

A polícia interveio de imediato para conter os ataques mas foi recebida com um nível de violência quase nunca visto – e muito menos esperado! – na Inglaterra. Latas de lixo, tijolos e outros objetos foram jogados contra os policiais e vários de seus veículos foram incendiados ou seriamente danificados.

Segundo a BBC inglesa, o nome verdadeiro do assassino é Axel Rudakubana. A polícia também apurou que ele é membro de uma modesta família cristã. Revelou ainda que o jovem já havia sido diagnosticado com “uma severa desordem dentro do espectro autista”. Segundo a mesma nota da BBC de Londres “ele andava se negando a sair de casa e a se comunicar com os demais membros da família, já por um certo período de tempo”. Preso, vai ser indiciado esta semana.

Caberia aqui aquele já cansativo clichê: até quando as redes sociais irão continuar semeando mentiras ou fomentando violências – neste caso, a racial – sem que seus donos sejam responsabilizados? Cinco dias depois das facadas e seu desfecho, em 4 de agosto Elon Musk postou uma frase, querendo dar a entender que a imigração em massa e as fronteiras abertas causaram os motins: “guerra civil é inevitável”. Frase curta, como rezava a cartilha do antigo Twitter.

Ao correr da semana que hoje se encerra, segundo a ABC australiana, 6.500 policiais foram mobilizados e muitos foram colocados próximo a 100 agências ou firmas legais que processam imigrantes. Muitas lojas e todas as mesquitas também foram fechadas em cidades como Bristol, Oxford, Liverpool e Birmingham. No entanto, em vez de apenas bandos de “right-wing thugs” – como a eles se referiu o primeiro-ministro – a polícia passou a encontrar nessas mesmas áreas centenas de milhares de manifestantes pacíficos, com cartazes e dizeres contra os grupos violentos anti-imigração.

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Marcus Cremonese é jornalista pela FACHA, Rio de Janeiro. Reside em Rylstone, NSW, Austrália.